Pilha de sonhos no lixão

Em "O dia do gafanhoto", de Nathanael West, Hollywood é cenário que esconde a sucata de todos os sonhos
Nathanael West, autor de “O dia do gafanhoto”
24/07/2016

Nathan Wallenstein Weinstein desafiou as verdades que o destino propôs. Trocou o sobrenome europeu que recebeu de seus pais por West, como viria a ser conhecido, que encerra em si o espírito americano de independência. Cresceu em Nova York, mas aos 30 anos mudou-se para o outro extremo do país, Los Angeles. Era autor de contos e romances, mas ganhava a vida como roteirista. Sua carreira mostrou-se igualmente contraditória: o período mais fértil foi patrocinado pela indústria do cinema, mundo de cenários que ele habilmente derrubou com sua prosa. O dia do gafanhoto, romance publicado no fatídico ano de 1939, denuncia a desilusão, a violência e solidão dos indivíduos que vivem nas franjas desse mundo. É uma das sátiras mais contundentes escritas sobre Hollywood, mas é muito mais do que isso.

O protagonista Tod Hackett, artista plástico contratado por um estúdio em Hollywood para desenhar cenários, sonha em pintar “O incêndo de Los Angeles”, onde pretende representar os tipos que vê pela cidade. À medida que vai conhecendo um pequeno círculo de prostitutas, bicheiros e falsários, presencia imagens violentas que irão compor seu quadro: Mas seria O incêndio de Los Angeles, a pintura que planejava realizar em breve, aquilo que provaria de fato seu talento.

Duas figuras assumem grande importância: Faye Greener, jovem, linda, sensual, artificial e fria, e Homer Simpson, patético contador que veio a Los Angeles para esquecer um episódio embaraçoso em seu emprego anterior. Outros personagens vão surgindo, e Tod Hackett percebe que assim como ele, todos os homens desejam Faye. À sua volta, a violência está prestes a irromper a qualquer momento.

Parte da tensão resulta do envolvimento involuntário de Tod Hackett com os outros personagens, que cruzam com frequência o tênue limite entre vaidade e perversidade, sem que isso resvale em condenação. O leitor sente pena deles, reconhece a si próprio na tensão da ambiguidade. Um mínimo gesto de Faye, a mais ambígua de todos, aos olhos de Tod, torna-se emblemático:

Ela devolveu o elogio sorrindo de uma forma peculiar e secreta, depois correndo a língua pelos lábios. Era um dos gestos mais característicos dela, muito eficaz. Parecia a promessa de todos os tipos de intimidades pouco definidas, embora fosse de fato simples e automático como um “obrigado. Ela usava esse artifício para agradecer a qualquer um qualquer coisa, não importava o quão desimportante fosse.

A despeito de seu distanciamento analítico, o próprio observador é perseguido por fantasias de agressão e estupro, Faye sempre o objeto de desejo. Mas cada vez que imagina uma dessas cenas é interrompido antes do clímax. O ritmo da narrativa é acelerado, o zoom nesse ou naquele personagem aumenta muito e em seguida corta bruscamente para outra cena, com efeito cinematográfico.

O dia do gafanhoto, romance publicado no fatídico ano de 1939, denuncia a desilusão, a violência e solidão dos indivíduos que vivem nas franjas desse mundo.

A atmosfera artificial no romance expõe a fragilidade do otimismo frequente na literatura daquela época, como a de Horatio Alger e outros muito populares. Na Hollywood de Tod Hackett, a fé, causas políticas, amor romântico, tudo é fraude. O poeta W. H. Auden cunhou o termo “Mal de West” para se referir à pobreza econômica e espiritual; afirmou que os romances de West eram “parábolas sobre um Reino do Inferno comandado não por um Pai das Mentiras mas por um Pai dos Desejos”. Infelizmente, West foi profético em sua visão pessimista do mundo do entretenimento. O romance, publicado há mais de 70 anos, é mais atual do que nunca.

A tragédia anunciada em O dia do gafanhoto, fruto da tradição clássica, deve muito também às fontes bíblicas, a começar do título, como demonstra o tradutor Alcebíades Diniz em seu ensaio Um apocalipse cinematográfico, incluído na edição da Carambaia. Tudo parte da filmagem da batalha de Waterloo, observada por Tod em um lote do estúdio. Ele, mais culto e perspicaz do que seus novos amigos, percebe o ridículo desse falso exército fantasiado de passado, correndo pelo cenário que mal disfarça o presente. A batalha de Waterloo, onde começou o fim da glória de Napoleão, já é um prenúncio da tragédia que virá, metaforizada em “O incêndio de Los Angeles”.

Se isso não bastasse, há uma sangrenta briga de galo; um jantar de codornas assadas cujas cabeças são arrancadas das aves, ainda vivas, pelo anfitrião, e um funeral tarantinesco. Essa linguagem, em que atos e objetos de grande carga simbólica são mencionados en passant, e onde flashbacks são interrompidos pela urgência do presente, antecipava a era do film noir das décadas seguintes, até pela ausência de humor: o riso, frequente nas cenas de West, é manifestação de crueldade, do monstruoso.

A selvageria em O dia do gafanhoto não é gratuita, é meio de comunicação entre os personagens, que parecem ir do tédio à agressão sem nuances. É importante lembrar que o livro retrata (e foi escrito durante) um dos períodos mais devastadores da história americana, a Grande Depressão. No texto não há referência direta à Depressão — escapismo que fala por si. Mas quando Tod avista, em um terreno, uma gigantesca pilha de cenários, entulho e maquetes, verdadeiro lixão de sonhos, o leitor sabe que não se trata apenas de Hollywood, e sim do país todo.

West chocou os leitores de sua época ao remar contra a prática modernista de abominar a cultura de massas. Ele não só deu voz e volume a essa cultura, como recusou-se a julgá-la mesmo enquanto expunha sua irracionalidade e potencial ameaça. Tod Hackett, pintor, atento ao detalhe, dá ao leitor a distância necessária e suficiente. Mas para West, a violência das massas era uma experiência muito próxima, pessoal. Seus pais estavam entre os dois milhões de judeus russos que chegaram aos Estados Unidos entre 1881 e 1924, fugindo dos pogroms, massacres de judeus organizados pelo czar e posteriormente por Stalin. Todos os jornais do mundo noticiaram o pogrom horripilante ocorrido mais tarde em Kovno, cidade natal dos Weinstein, onde um rabino amarrado a uma cadeira teve sua cabeça serrada. West nasceu em solo americano em 1903, quando seus pais tinham 25 anos, portanto o filho único não pode ter crescido alienado desse trauma.

Clarice Lispector era filha de judeus ucranianos que chegaram ao Brasil em 1922 após sobreviver a um pogrom, cujas sequelas acabaram causando a morte de sua mãe. Apesar de não haver qualquer referência a esse horror em sua obra, é evidente que não há sucesso ou sol tropical que o faça desaparecer da memória. O mesmo se dá em O dia do gafanhoto, escrito entre 1934 e 1938, em plena ascensão do nazismo. Há quem especule se Tod, o nome do protagonista, que em alemão significa morte, não seria um indício. Alemão é extremamente semelhante ao iídiche, idioma que West, como Clarice, ouvia de seus pais em casa. Tod, a morte, tudo observa (espreita?) enquanto concebe o incêndio final, que ocorre quando a multidão adquiriria uma natureza demoníaca.

O episódio final em si já daria um filme, por seu impacto e complexidade. Se até então havia um fiapo de ingenuidade em Tod, agora, no momento em que quase perde a vida, ele tem sua epifania e finalmente “vê” sua pintura com todos os detalhes. West acena com ironia à “alta cultura”: o cinema onde Tod é agredido pela multidão, fica desacordado e “sonha” com seu quadro chama-se “Mr. Khan”, alusivo a Kubla Khan — um poema no sonho, escrito por Samuel Taylor Coleridge, que alegava ter concebido o poema em um sonho. Corroborando o que aponta Alcebíades Diniz — e Ingrid Norton, Richard Rayner, entre outros —, Nathanael West foi um grande ouvinte: apreendeu a herança erudita na linguagem desqualificada, simplificada, das vidas trágicas e grotescas, trágicas por serem grotescas. Homer Smith, com suas mãos enormes e incontroláveis, personifica o grotesco, e completa a tragédia em uma cena digna de Julius Caesar, de Shakespeare.

O prazer das várias interpretações, da precisão de linguagem, de personagens inesquecíveis, é enriquecido pelo trabalho extraordinário da editora. O projeto gráfico inclui na capa o detalhe de um cartaz de 1936, bem ao gosto de Tod Hackett; além do romance, há um poema, contos e ensaios de ou sobre a obra de West, selecionados e traduzidos por Alcebíades Diniz; as cores e referências tipográficas também são fruto de pesquisa da época. A tradução é primorosa, tanto nas opções que faz entre possibilidades no português como nas opções de não traduzir determinados trechos, inserindo notas do tradutor concisas ao pé da página.

Nathanael West não conheceu grande fama em vida, mas a ideia do sonho americano corrompido perdurou muito depois de sua morte, precoce, em um acidente. Em 1994, Harold Bloom incluiu O dia do gafanhoto em seu Cânone Ocidental e em 2005, a revista Time o incluiu na lista dos 100 melhores romances de língua inglesa de 1923 a 2005. Uma vez mais, West desafiou o destino: não morreu.

O dia do gafanhoto
Nathanael West
Trad.: Alcebíades Diniz
Carambaia
341 págs.
Nathanael West
Nasceu Nathan Wallenstein Weinstein (1903-1940), em Nova York, filho de imigrantes judeus da Rússia. West sempre demonstrou pouco apego aos estudos, e quando se formou (com um diploma falsificado), teve vários empregos até que começou a trabalhar como roteirista em Hollywood. Começou a publicar romances em 1931, conquistando a admiração de outros importantes autores contemporâneos, como William Carlos Williams, Dashiell Hammett, e W. H. Auden. Publicou romances, peças de teatro, contos e inúmeros roteiros de cinema. Morreu com sua esposa em um acidente automobilístico, e passou a ser ainda mais reconhecido nas décadas seguintes. Seus romances mais conhecidos, O dia do gafanhoto e Miss Lonelyhearts, continuam a ser reeditados em muitos idiomas.
Vivian Schlesinger

Escritora, tradutora e mediadora de debates literários. Autora do livro de poemas Papaya na madrugada.

Rascunho