Múltiplos caminhos

"O grifo de Abdera", de Lourenço Mutarelli, incorpora diversas linguagens, do traço das HQs ao teatro
Lourenço Mutarelli, autor de “O grifo de Abdera”
07/06/2016

O grifo de Abdera, de Lourenço Mutarelli, surpreende-nos com uma narrativa desafiadora: como contar histórias que se descortinam nas linguagens cifradas de sonhos, pesadelos, loucuras, frustrações e desejos da vida? Como bem sinaliza Antonin Artaud, em O teatro e seu duplo, “… quando falamos a palavra vida, deve-se entender que não se trata da vida reconhecida pelo exterior dos fatos, mas dessa espécie de centro frágil e turbulento que as formas não alcançam”.

Encarar esse desafio enquanto escrita é convocar também leitores que se disponham a penetrar em uma multiplicidade de questões que estão longe de oferecer caminhos simplistas de interpretações. Penetrar nessa espécie de centro tão frágil e turbulento, que não se submete a formas fixas, é abrir mão de qualquer perspectiva de facilidades. Ou seja, para ampliar as leituras da vida contemporânea, em sua complexidade, precisamos também de instrumentais complexos de análise.

O grifo de Abdera nos oferece uma gama muito ampla de abordagens, a começar pelo título cujo significado é, detalhadamente, esmiuçado pelo narrador. Após receber uma misteriosa moeda cunhada com símbolos mitológicos da antiga Grécia, o escritor interrompe sua crise de criatividade e volta a escrever o livro em questão.

O romance está dividido, estruturalmente, em três partes, intituladas respectivamente: I. O livro do fantasma, II. O livro do duplo e III. O livro do livro.

O livro I tem como eixo predominante uma tomada metaficcional. Ou seja, debruça-se sobre o processo de construção da narrativa, da ação e dos personagens, e da própria engrenagem da produção literária. O livro II apresenta-se como forma de história em quadrinhos, assinada por Oliver Mulato, desenhista amador, professor de Educação Física, ex-atleta. E o livro III dá prosseguimento, entre outras coisas, à história afetiva de Oliver e seu trágico desfecho, já anunciado ainda nas primeiras páginas.

Mauro apresenta-se como narrador que luta para se constituir enquanto sujeito do seu próprio discurso, dentro do emaranhado de vozes que o tomam de assalto e exigem a cidadania.

Percebi que há algo de místico no ato de escrever ou de se manifestar de qualquer forma artística…, que há em minha obra vozes que, embora me pertençam, não são a minha. Embora me pertençam.

Dentre esse emaranhado de vozes e da urgência de ganharem expressão surgem Mauro, Paulo, Mundinho, Oliver e Lourenço Mutarelli, Martha, Gilda, Olga e outros. Mauro Tule Cornelli afirma: “a partir de um anagrama do meu nome, eu e Paulo, criamos um autor. Lourenço Mutarelli” (ou terá ocorrido o contrário?). Pois bem, o autor criado pelos dois parceiros desenvolve uma extensa obra iniciada por Transubstanciação até Caixa de areia, última parceria interrompida com a morte de Paulo em um acidente de carro. Até aí, a obra era escrita por Mauro e desenhada por Paulo. Sem este, Mauro teve que se virar sozinho e abandona a escrita de histórias em quadrinhos e passa a escrever livros.

Enquanto isso, Lourenço Mutarelli é representado publicamente por Mundinho, a partir de um acordo com Mauro, que não era muito dado a exposições. Segundo ele, muitos outros escritores por timidez têm também seus avatares. Mundinho é definido pelo parceiro como sendo “um desses que vivem de pequenos bicos ilegais. Faz jogo de bicho e vende entorpecentes no bar do Marujo, há mais de vinte e cinco anos”. Por essa definição, dá para termos uma ideia do caráter peculiar desse parceiro. Algumas de suas atitudes começam a incomodar Mauro, que passa a questionar seu papel de escritor-fantasma do malandro, o que o leva a pensar em trilhar seu próprio caminho, atitude já tomada a partir do último livro Em uma ocasião exterior, escrito e assinado já por sua conta e risco.

O duplo
Para completar essa “tríade quadripartida”, surge Oliver que, no decorrer da trama, ganha força de protagonista e acaba sendo identificado por Mauro como seu Duplo. A voz de Oliver passa a penetrar e pertencer a Mauro, embora não sendo exatamente a sua, numa estranha conexão. É nas dobras da linguagem, que essas identidade confundem-se e fundem-se, sem, contudo, se perderem de si mesmas. Nesse romance, apesar de Mauro atribuir a si a culpa pelo desfecho trágico de Oliver, ambos mantêm entre si uma conexão de profundo respeito, admiração e compaixão um pelo outro. Diferentemente do duplo do Sr. Conselheiro Goliadkin, personagem de O duplo, de Dostoievski, que se transforma num ferrenho inimigo do protagonista, minando seu trabalho e ameaçando tomar seu lugar.

Do ponto de vista filosófico, há uma intensa discussão sobre o duplo, especialmente Foucault e por extensão Deleuze debruçam-se sobre a questão. Para o primeiro, o cuidar de si implica o estabelecimento de intensas relações de poder com os outros, que se desdobram de dentro para fora e de fora para dentro de cada sujeito. O duplo, segundo Deleuze, não é uma projeção do interior e sim seu contrário, “uma interiorização do lado de fora. (…) Não é nunca o outro que é um duplo; eu não me encontro no exterior, eu encontro o outro em mim”.

A profusão de vozes que acomete Mauro está diretamente ligada às atribuições de escritor. Para construir Oliver, enquanto personagem, Mauro interioriza esse outro e passa a se constituir como narrador de histórias de vida que se cruzam e se encontram em suas identificações e diferenciações. A explicitação dessa conjunção de vidas e de subjetividades diz respeito a uma clara discussão do processo criativo ficcional. Cada criatura, ao ser criada, se desdobra para seu criador em um processo de interiorização porque estabelece relações de trocas importantes. A vida do outro interiorizado no sujeito que conta a história mistura-se a sua própria vida, porque passa a lhe dizer respeito a tal ponto que o outro é percebido como um duplo. No caso do romance, a simbiose do narrador com as outras personas acontece de forma unilateral. Ou seja, Mauro percebe e tenta descrever sua relação de duplicidade com Oliver, enquanto este se mantém preso às suas dores e às suas obsessões, estabelecendo para si uma conflituosa individualidade.

A maneira mais concreta que isso se manifesta é no livro II do romance, cujo formato é de história em quadrinhos. É encartado no miolo do romance e identificado com o título XXX, assinado por Oliver Mulato. Para Mauro, além de uma homenagem póstuma ao desenhista-autor do trabalho, funciona também com um manancial de fragmentos repetidos e recorrentes que figuram no texto escrito das outras duas partes, sinalizando a estreita relação do narrador com seu duplo.

Alguns sub-capítulos da primeira parte se debruçam sobre a leitura da história em quadrinhos que para o leitor da prosa narrativa pode parecer muitas vezes incompreensível. É preciso, de certa forma, voltar ao início do livro para seguir adiante. Ou melhor, como nos adverte a fala de alguns personagens dos desenhos, eles se divertem em dizer coisas sem sentido, que não apontam, necessariamente, para a falta deles. Mas é o excesso de estímulos e possibilidades de leituras que sugerem um contexto de nonsense.

Mais que o texto, mais que a imagem, é preciso aprender a ler a vida, é preciso transitar entre diferentes linguagens. O romance contemporâneo e este livro, em especial, radicalizam na experimentação de múltiplos caminhos da narratividade. É dentro dessa perspectiva que incorporam, além do traço visual e do diálogo econômico da HQ, a marca da linguagem cinematográfica e teatral, seus vazios de significação, ruídos e silêncios, a simultaneidade e efusão de planos, a polifonia de vozes que transitam entre tempo histórico e tempo mítico, entre espaços físicos da cidade e do papel em que se escreve e se desenha e o espaço simbólico e imaginário do sonho, da fantasia, da loucura e do mito.

O grifo de Abdera
Lourenço Mutarelli
Companhia das Letras
264 págs.
Lourenço Mutarelli
Nasceu em 1964, em São Paulo (SP). Escritor, artista gráfico, roteirista e ator, publicou diversos álbuns de histórias em quadrinhos. O cheiro do ralo, seu primeiro romance, foi lançado em 2002 e virou filme, dirigido por Heitor Dhalia.
Vilma Costa

É professora de literatura.

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