Meu caro Drummond

Em "A lição do amigo", Drummond faz anotações e comentários em dezenas de cartas que recebeu de Mário de Andrade
Ilustração: Fábio Abreu
07/06/2016

Ler cartas alheias produz uma sensação de devassar segredos escritos de quem os remeteu e daqueles a que foram destinados. Chega a haver a impressão de que se é um voyeur a se comprazer em espiar pelo buraco da fechadura intimidades que não lhe dizem respeito. Por analogia, são práticas parecidas. Ler a correspondência dos outros é como espreitar a vida privada que se revela nas linhas e linhas de cartas trocadas entre uma pessoa e outra.

Na realidade, quase todos têm certo prazer em ficar a par de confissões, confidências, revelações e outras coisas sigilosas e íntimas que ocorrem com o próximo. Esse tipo de curiosidade faz parte da psique humana. Um exemplo bem trivial: na televisão, alguns programas exploram muito bem essa vocação para espionar o que passa com os outros. Entretenimentos desse tipo podem lá não ser grande coisa, todavia levam milhares de telespectadores à frente da telinha para assistirem apaixonadamente a intrigas e mexericos sobre gente que mal conhecem.

No entanto, é preciso avaliar a leitura da correspondência de outrem sob outro prisma. Vale cogitar que essa ação possui um lado positivo, capaz de esclarecer fatos passados e de lançar luz sobre questões obscurecidas pela inexorável passagem do tempo. Nessa linha de raciocínio, a ação de revirar os papéis escritos que foram destinados a outros pode ser justificada, por exemplo, pela importância que possuem para a compreensão da nossa história literária.

Nesse sentido, conhecer o pensamento de duas figuras importantíssimas do Modernismo é um bom motivo para ler as cartas que Mário de Andrade remeteu a Drummond. Além disso, desde o ano passado, quando a Flip o homenageou nos 70 anos de sua morte, Mário voltou merecidamente a ser assunto das conversas. Eis uma oportunidade de conhecer o escritor na intimidade de suas cartas.

Cartas públicas
Mas antes que alguém pense que comete algum crime ao abrir o volume A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, convém pôr os pingos nos is. O próprio Drummond deixa claro na introdução que “A publicação da correspondência de Mário de Andrade envolve dois problemas, um de natureza ética, outro meramente técnico”. Esse comentário do poeta revela a inquietação de Mário com os olhares alheios a espreitarem sua farta correspondência com inúmeros escritores, amigos e personalidades de sua época e mostra que Drummond busca manter as singularidades ortográficas do autor de Macunaíma e fazer anotações para iluminar as sombras elípticas comuns ao universo epistolar.

Entre os dois problemas apontados por Drummond, a questão ética de publicar as cartas do amigo mostra-se a mais complexa de se lidar, já que Mário havia estabelecido que sua correspondência deveria ser lacrada e somente aberta cinquenta anos após sua morte. A família incumbiu-se de fazer sua vontade, e esse desejo foi mantido mesmo quando Antonio Candido e José Aderaldo Castello, em 1968, levaram para a Universidade de São Paulo o acervo do escritor — incluindo as correspondências com e sem lacre. Mesmo que muitas cartas de Mário já fossem de conhecimento público, foram mantidas num cofre, conforme a orientação dos herdeiros do escritor.

Essa preocupação de Drummond com a questão da privacidade ao decidir levar a público o que Mário lhe escrevera ao longo de vinte anos também está presente no posfácio de André Botelho. Este comenta que “Lendo essas cartas que a princípio não nos foram dirigidas, mas às quais agora podemos ter acesso, flagramos o cotidiano de dois grandes artistas e intelectuais”. Nesse comentário, Botelho assinala um conflito ético em ler sobre assuntos que compõem o universo privado dos dois poetas, pois isso se assemelha à apropriação da intimidade alheia, uma vez que, de certa forma, o leitor acaba sendo um elemento estranho no relacionamento que há entre os dois escritores.

Em carta de 8 de maio de 1926, Mário destaca essa ideia de privacidade que deveria existir nas cartas: “Eu falo sempre que uma das coisas mais maravilhosas da amizade é esse direito do segredo entre dois. Você sabe: a gente se estima até mais não poder e se revela um pro outro o que tem de importante na vida porque isso ajuda a gente a suportar a vida, é incontestável”. Todavia, vai ser o próprio escritor que abre a guarda e comete infidelidade contra esse direito supostamente inviolável de haver nas cartas trocadas a manutenção de segredo entre as duas partes envolvidas.

Em Mário havia uma persona que o escritor assumia enquanto estava redigindo cartas e outra quando o escritor se deparava tête-à-tête com seu interlocutor.

Drummond faz alusão a esse comportamento ambíguo do escritor. Em 1944, o autor de Alguma poesia publicou alguns trechos de cartas trocadas entre ambos. Na carta de 16 de março de 1944, não se constata nenhuma reação negativa por parte de Mário: “Pois, Carlos, que coisa estupenda! quando eu lia os trechos de cartas minhas que você citava, era maravilhoso […] Eu me lembrava mais: lembrava dos momentos em que escrevera aquilo, as sensações se repetiam quase integrais nos trechos mais longos, hora, estado físico, momentos circundantes do em que eu escrevera aquilo!”. Como se pode verificar, os comentários de Mário são esfuziantes.

Na contramão dessa boa vontade expressa ao amigo poeta, numa correspondência datada de agosto de 1943, Mário dizia, numa linguagem meio cartorial, ao jovem jornalista Murilo Miranda, que lhe pedira autorização para publicar algumas cartas trocadas entre ambos: “[…] declaro solenemente, em estado de razão perfeita, que quem algum dia publicar as cartas que possuo ou cartas escritas por mim, seja em que intenção for, é filho da puta, infame, canalha e covarde”. Tudo isso mudou no ano seguinte, como se vê nos elogios acima tecidos a Drummond. Até Murilo Miranda acabou beneficiado com o fim da inflexibilidade de Mário, pois este acaba autorizando o jornalista a divulgar o que Mário havia escrito a Cecília Meireles.

Diálogo epistolar
Na apresentação de A lição do amigo, Drummond conta sobre o diálogo epistolar entre ambos. Contudo, salienta que “jamais convivi com Mário de Andrade a não ser por meio das cartas que nos escrevíamos”. Mesmo entre os anos de 1938 e 1941, quando Mário viveu no Rio de Janeiro, não houve entre os dois escritores a “fraterna conversa” tão esperada, ainda que Drummond também morasse na cidade. Entre ambos houve sempre uma excessiva discrição.

Percebe-se que, ao menos no âmbito da escrita, Mário se revela bastante comunicativo e expansivo. A afabilidade com que se dirige a Drummond nos textos corrobora bem isso. Ao longo dos anos, várias vezes vai se dirigir ao amigo com as frequentes expressões “Carlos do coração”, “Meu Carlos”, “Meu querido Carlos”. No entanto, no plano pessoal, paradoxalmente, esse tratamento efusivo e esse ar de bate-papo franco nunca ocorreram.

No poema Eu sou trezentos, Mário afirma ser muitos. Pode-se estender isso ao universo de sua vida real e o de suas cartas. Em Mário havia uma persona que o escritor assumia enquanto estava redigindo cartas e outra quando o escritor se deparava tête-à-tête com seu interlocutor. Em carta de 16 de dezembro de 1925, Manuel Bandeira destacava tal idiossincrasia do autor, isto é, um Mário epistológrafo e outro de carne e osso: “Há uma diferença grande entre o você da vida e o você das cartas. Parece que os dois vocês estão trocados: o das cartas é que é o da vida e o da vida é que é o das cartas. Nas cartas você se abre, pede explicação, esculhamba, diz merda e vá se foder; quando está com a gente é… paulista. Frieza bruma latinidade em maior proporção pudores de exceção”.

No trecho da carta de Bandeira, reforça-se a ideia de que o Mário ao vivo era pouco dado a confidências e expansões com quem quer que fosse. Intimidade só nas cartas, como se percebe nas enviadas a Drummond. Nessas, há um Mário à vontade, aquele que assim se confessara numa missiva a Murilo Miranda: “Sei me abrir nas cartas, mas não sei, em corpo presente, confessar minhas fraquezas”.

Em A lição do amigo, em meio a discussões variadas, Mário frequentemente queixa-se ao amigo sobre problemas de saúde e de dinheiro. O escritor não tem pudor de tratar sobre essas fraquezas quando escreve. A prova dessa intimidade revelada nas cartas está em dois dos três Apêndices que Drummond anexou no fim do volume. São diversos excertos de correspondências de Mário dirigidas a vários amigos nas quais ele salienta sem pejo como a falta de grana e as doenças o incomodaram vida afora.

Religião da correspondência
Depois das edições lançadas pelas editoras José Olympio e Record, esta é a terceira vez que A lição do amigo vem ao mercado, comprovando que não são apenas os “moços, estudantes universitários de letras ou simples aspirantes à criação literária” que nutrem curiosidade pelo conteúdo das cartas de Mário de Andrade endereçadas a Carlos Drummond de Andrade.

Cada palavra, cada linha, cada parágrafo dessas cartas que os leitores têm o prazer de ler e saborear evidenciam que Mário de Andrade não se reduzia a um contumaz missivista. Ele possuía na carne e no espírito a “religião da correspondência”, de acordo com definição exata que um dia Antonio Candido fez dele. Em suas cartas e também na sua atuação como intelectual, sempre houve a presença de uma verdadeira consciência crítica de par com seu vasto conhecimento sobre literatura, música, artes, folclore, literatura, etc. revelando que o escritor foi (e ainda é) uma das figuras mais importantes da intelligentsia nacional.

De fato, nessas correspondências de Mário enviadas a Drummond, há a sensação de que os leitores também cumprem, de certa forma, um pouco o papel de destinatários das palavras ali redigidas. De posse desse sentimento, os leitores certamente passam mesmo a sentir-se mais íntimos de ambos os escritores, a ponto de abrirem os livros tanto de um quanto de outro com convicção de que nessas obras não vão encontrar textos distantes, mas sim palavras ditadas por amigos que lhes confidenciam algum segredo.

Após esse contato com as cartas de Mário de Andrade a Drummond — bem comentadas e com inúmeras referências para mais informações para meros curiosos e interessados em epistolografia — muitos leitores certamente vão se sentir desejosos de conhecer o outro lado da moeda, isto é, as cartas que Drummond remeteu a Mário. A esses, uma leitura bastante recomendável e que permite o cotejamento do que um escreveu ao outro é Carlos e Mário: correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade (Bem-Te-Vi Produções Literárias, 2002, 616 págs.), volume que contém 161 cartas dos dois poetas, organizado por Lelia Coelho Frota e notas e prefácio de Silviano Santiago.

A lição do amigo
Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade
Companhia das Letras
440 págs.
Carlos Drummond de Andrade
Nasceu em Itabira em 1902 e faleceu no Rio de Janeiro em 1989. Com Alguma poesia (1930), seu livro de estreia, revelou-se de imediato o primeiro grande poeta surgido na segunda fase do Modernismo. Ao longo de toda sua vida, o poeta dedicou-se ao jornalismo. Foi dos jornais para os quais escreveu que retirou boa parte de suas crônicas e contos publicados em livros.
Marcos Hidemi de Lima

É professor de Literatura Brasileira na UTFPR de Pato Branco (PR). Autor de Dança de palavras e sonsMulheres de GracilianoVárias tessituras. Escreve crônicas semanais para o Diário do Sudoeste, jornal de Pato Branco.

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