Estranho fascinante

"As rãs", do chinês Mo Yan, é um livro delicado e suave, mas que esconde peso, dor, sofrimento, pobreza e submissão
O chinês Mo Yan, autor de “As rãs”
05/06/2016

Ao ler Mo Yan me senti em um mundo completamente desconhecido e fantástico. Um mundo em que os nomes dos personagens são pura poesia, em que as histórias são fábulas, em que as memórias são sonhos e cânticos. Senti novamente a saudade e o prazer de ouvir uma história pela primeira vez. De imaginar o rosto, o medo, as batalhas e as conquistas dos heróis. Dos vilões. Das famílias que perpetuam tradições e aceitam o seu implacável destino. Mo Yan, mesmo sem grande rebusco na escrita (com certeza por problemas da tradução do chinês para o português, e não por problemas do traidor/tradutor), nos transporta para uma vila e mundo idílico, nos faz desejar conhecer mais e mais os personagens e suas questões, nos transtorna enquanto leitores e admiradores de uma cultura alheia e supostamente distante.

As rãs é um livro delicado. Suave. Leve. Mas, ao mesmo tempo, esconde peso, dor, sofrimento, pobreza, submissão. São histórias, cartas, recordações e memórias de um tempo tão atual e, também, tão surreal: a intervenção cruel do Estado no ventre de todas as famílias chinesas. Ao contar a história de uma parteira, o narrador, seu sobrinho, fabula as transformações nas vidas das pessoas mais simples. Os bilhões de habitantes que vivem na China têm nome, sobrenome, poesia, e muitos sofrimentos e desejos.

Usar rãs logo no título desperta no leitor o poder da intertextualidade. De início, percebemos uma referência explícita ao girino — larva de anuros, ou estágio inicial da fecundidade — que, não por acaso, também é o apelido do narrador do livro. De acordo com a narrativa, antes do nascimento, nesse período de “vida” intrauterino, haveria possibilidade desse rã-girino ser retirado coercitivamente do ventre da mãe pelo poder do Estado. Tudo isso em virtude da política do controle de natalidade imposta pelo Governo. também faz referência ao mercado negro das mães de aluguéis utilizado pelos casais que não conseguem ter filhos. O narrador explica a utilização do termo: “Por que a palavra ‘wa’ pode significar tanto ‘rã’ como ‘bebê’? Por que o choro de um bebê que saiu do ventre da mãe é parecido com o coaxo de uma rã? Por que os bonecos de barro da nossa terra muitas vezes têm uma rã no colo? E por que a deusa criadora da humanidade se chama Nü Wa?” Mas há também outras leituras fundamentais para entender este livro como uma grande obra literária.

Em tempos atuais, sobretudo aqui no Brasil, ser um autor “bíblico”, religioso, eclesiástico, pode significar um grande sucesso de vendas. (Também um texto de baixa qualidade). Porém, como já disse uma vez Borges, ao responder sobre a utilização constante de elementos bíblicos em sua obra: “e tem literatura mais fantástica que a Bíblia”, vale tecer uma pequena relação entre as rãs de Mo Yan e as rãs do Senhor. Como não se recordar das Dez Pragas do Egito? A calamidade das rãs e a maldição da morte dos primogênitos? Essa imposição quase ditatorial de uma ordem superior?

Mesmo distante, Mo Yan releu, à sua maneira, a Bíblia (isso pouco importa, basta apenas que nós, leitores, imaginemos)?

E o Eterno disse a Moisés: “Diz a Aarão: Estende a tua mão com tua vara sobre os rios, sobre os canais e sobre as lagunas, e faz subir as rãs sobre a terra do Egito”. E Aarão estendeu sua mão sobre as águas do Egito, e subiu a rã e cobriu a terra do Egito. E fizeram assim os magos com suas magias e fizeram subir as rãs sobre a terra do Egito. Então o Faraó chamou a Moisés e a Aarão e disse-lhes: Rogai ao Eterno para que tire as rãs de mim e do meu povo, e enviarei o povo e sacrificarão ao Eterno. (Bíblia Hebraica, Êxodo 8: 1-5).

São histórias, cartas, recordações e memórias de um tempo tão atual e, também, tão surreal: a intervenção cruel do Estado no ventre de todas as famílias chinesas.

Grande praga
Será que o Estado Chinês encarava o nascimento como uma grande praga? Uma praga incontrolável? Uma praga que se alastraria indiscriminadamente pelo solo sagrado e que deveria ser controlada? Será que as rãs precisariam ser eliminadas para existir esse controle político? Será que para atingir algo supostamente bom para todos, algo extremamente desagradável deveria ser feito? Maniqueísmo? Assim, imerso nessa dicotomia, que o narrador de Mo Yan descreve a benevolência de sua tia parteira, que trouxe ao mundo milhares de crianças saudáveis, mas também a sua incrível crueldade ao abortar sem dó as crianças vistas como “ilegais”. Seria essa tia a visão de um deus extremamente poderoso e “justo”? Justo: uma atribuição muita distinta de “bondoso”. Será que ela, a tia, que aprendeu técnicas ocidentais para realização bem-sucedida de milhares de partos, salvando inúmeras crianças e mães de infecções e da morte, também é vista como aqueles “bons alemães”, aceitando sem questionamento as leis do Estado, ao subtrair girinos saudáveis do corpo de inúmeras mulheres? Como diz o narrador sobre a tia: “Será que alguém que leva o senso de responsabilidade a esse ponto pode ser considerado gente?”. Responsabilidade, dever e justiça são também temas tratados nesse romance.

Continuando a leitura fantástica e bíblica das rãs, pergunto: será que há culpa e responsabilidade nesses carrascos-parteiros? Será que suas mãos estão sujas? Será que as mãos do Estado são tão sujas (ou tão limpas) quanto as das parteiras? Assim escreve o Girino: “Cada criança é única e insubstituível”. Qual criança ele se refere. A criança perdida em meio à pobreza, ou a eliminada politicamente ainda como anura? Haveria uma forma de inocentar esses abortos impostos pelo Estado? (A política religiosa e governamental do Brasil funciona de forma diferente, porém ainda extremamente cruel e absurda). Girino continua: “o sangue que manchou as mãos jamais será lavado? A alma atormentada pela culpa jamais encontrará alívio?”. A morte, aqui, seria uma resignação, como a do Faraó? As rãs, acredito, contribuíram para o ápice bíblico da morte no Livro e neste romance: “E Moisés disse (ao Faraó): Assim falou o Eterno: ‘Por volta de meia-noite Eu sairei pelo meio do Egito. E todo primogênito na terra do Egito morrerá — desde o primogênito do Faraó, que se senta sobre seu trono, até o primogênito da serva que está por trás da mó, assim como todo primogênito de animal. E haverá clamor tão grande em toda terra do Egito que, como ele, nunca houve e como ele jamais haverá.” (Bíblia Hebraica, Êxodo 11: 4-6).

Enredo, narrativa, questionamentos e histórias me fizeram gostar muito desse novo (velho) mundo. As rãs é um livro que, tecendo ou não referências históricas e bíblicas, merece ser lido e sonhado.

As rãs
Mo Yan
Trad.: Amilton Reis
Companhia das Letras
488 págs.
Mo Yan
É pseudônimo de Guan Moye. Nasceu em 1955 na província de Shandong. Publicou Sorgo vermelho em 1986, adaptado para o cinema em 1987. Romancista, autor de novelas e contista, foi o primeiro autor Chinês a receber o Prêmio Nobel de Literatura (2012).
Jacques Fux

Venceu o Prêmio São Paulo de Literatura de 2013 com o livro Antiterapias. É doutor e pós-doutor em Literatura Comparada e um matemático apaixonado. Autor de Literatura e matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o Oulipo (Prêmio Capes de Melhor Tese do Brasil de Letras/Linguística), Brochadas: confissões sexuais de um jovem escritor e Meshugá: um romance sobre a loucura. Foi pesquisador-visitante na Universidade de Harvard e escritor residente na Ledig House, em Nova York.

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