Liberdade, liberdade

Em "Grito", seu mais recente romance, Godofredo de Oliveira Neto discute literariamente o que é ser livre
Godofredo de Oliveira Neto, autor de “Grito”
04/06/2016

O mais recente livro de Godofredo de Oliveira Neto, 65 anos, borra as fronteiras que definem o que é um gênero literário. Grito tem 21 atos, pode até parecer uma peça de teatro, mas é um romance. A obra surge em meio ao caos e aos ruídos contemporâneos das redes sociais — mencionadas na obra.

Grito é uma recriação de Fausto, mito alemão, elaborado, entre outros por Goethe, e que — agora, na intervenção de Godofredo de Oliveira Neto — se passa em um apartamento situado em Copacabana, Zona Sul carioca. No centro da trama, principalmente dentro de um pequeno imóvel, estão Eugênia, ex-atriz, 82 anos e Fausto, 19, ator iniciante. Textos teatrais e um pacto os aproximam, os afastam e podem fazer com que ele se desmaterializem.

Fausto, do mito alemão, vendeu a alma.

A alma de Fausto, de Godofredo de Oliveira Neto, também tem dono. Ou dona. “Nunca se vendeu tanto a alma ao diabo como nos dias atuais”, diz o escritor catarinense radicado no Rio de Janeiro, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Autor de vários títulos, incluindo os romances O bruxo do Contestado (1996) e Amores exilados (2011), Godofredo foi entrevistado para esta edição do Rascunho para falar exclusivamente sobre Grito, que trata, entre tantas questões, de preconceito racial, erotismo na velhice, cotidiano em Copacabana, fragmentação, ruídos, silêncio e — principalmente — liberdade. Tudo isso, e bem mais, a partir de um texto exaustivamente retrabalhado pelo autor, que afirma: “a literatura é um dos veículos da consciência da sociedade”.

• Em outra entrevista recente, há uma afirmação sua: “O teatro é onde se dá a transmissão de mensagens múltiplas e simultâneas, arte que se encaixa bem no século 21, mundo da simultaneidade das informações. A literatura só tem a ganhar com essa extensão”. Grito, apesar dos 21 atos, que sugerem uma peça, não seria, ao contrário, exatamente um romance, um romance escrito no século 21, apresentado como uma peça de teatro, para confundir a recepção e borrar as fronteiras entre os gêneros?
O teatro é uma arte total. Ele ultrapassa o texto e depende da realização cênica. Os estudiosos falam em máquina cibernética, de polifonia informacional. A gente vive no século 21, em uma época de avatares, de travestimento. Falsos perfis nas redes sociais, second life, etc. E, como você lembrou, da simultaneidade de informações. É nessa contemporaneidade que o Grito mergulha. Mas é antes de tudo um romance, romance que toca na questão das fronteiras de gênero.

• O título de seu livro faz alusão a esses sons, em alguns casos, onipresentes: sirene, buzina, campainha, motor desregulado, equipamento de som em volume alto, etc. Estamos em meio a inúmeros gritos que acontecem o tempo todo? O silêncio acabou?
O código da linguagem tem ressonância na harmonia da música ou na cacofonia. É só a gente lembrar do Lied (canção) e da ópera. Eugênia busca a harmonia na música clássica tentando barrar o barulho externo. O grito do Fausto é aceito e até admirado por ela porque anuncia arte. Vive-se em épocas de cacofonia, a exemplo das imagens embaralhadas na tela do computador. Todas ao mesmo tempo, uma sobre as outras, alto e forte. Agora aparece inclusive um filminho falado sem que a gente tenha solicitado.

• O seu livro, a exemplo de outros romances magistrais, se anuncia, realmente diz a que veio, na primeira frase: “Ele (Fausto) diz se tratar do grito que sua irmã gêmea não conseguiu dar no nascimento”. Fausto é um grito? Por quê?
O grito do Fausto faz o papel da campainha na abertura das salas de teatro. Fausto purga as suas ansiedades e as suas paixões via espetáculo de ações.

Vive-se em épocas de cacofonia, a exemplo das imagens embaralhadas na tela do computador. Todas ao mesmo tempo, uma sobre as outras, alto e forte. Agora aparece inclusive um filminho falado sem que a gente tenha solicitado.

• Ao elaborar o personagem Fausto, a sua proposta foi dialogar com a ideia da fragmentação contemporânea? Afinal, ele comenta com a personagem-narradora Eugênia, que “o artista cênico leva grande vantagem sobre todo mundo porque desempenha uma gama variada de papéis — pode ser botânico, operário, patrão, advogado, médico, engenheiro, escritor, bandido, herói”. Ele ainda acrescenta: “Quero ser tudo e todos ao mesmo tempo! E vou ser”. O seu personagem, justa e exatamente um ator, seria um reflexo do que pode ser o cidadão, a mulher e o homem contemporâneo? Todos, os atores contemporâneos, querem ser tudo ao mesmo tempo agora?
Penso que a multiplicidade de papéis ou de exercer vários papéis marca a sociedade atual. A gente pode ver isso nas indecisões dos jovens sobre qual carreira profissional abraçar. Ser ator tem essa graça e essa adequação ao mundo de hoje. Fausto bem o sabe. A uma condição humana fragmentada corresponde um sujeito fragmentado.

• Eugênia banca Fausto. Ele, então, fez um pacto. Essa relação que o seu texto faz com o mito de Fausto, reelaborado por alguns, entre os quais Goethe, foi o que deflagrou a obra? E mais: como foi elaborar esse personagem?
O mito de Fausto escrito por Goethe foi o desencadeador de tudo. Mas também as leituras do Fausto de Thomas Mann, do Valéry, do Puchkin. Li e reli Os sofrimentos do jovem Werther desde muito cedo. Depois mergulhei no Fausto, que seduz e atemoriza. Enquanto compunha o Grito pensava no Goethe sem parar. Nunca se vendeu tanto a alma ao diabo como nos dias atuais.

• Grito, em trechos significativos da narrativa, mostra representações teatrais, ou leituras, dentro de um apartamento, onde estão apenas Eugênia, ex-atriz, e Fausto. “Fausto e eu nos bastamos”, ela comenta. Há comentários, observações, insinuações, por parte da narradora, de que alguns textos apresentados por Fausto talvez não tenham qualidade ou, talvez, maturidade. Criar tal situação seria uma maneira de se referir a companhias de teatro que encenam peças para um público reduzido, por exemplo? É uma alusão à falta de público para teatro, música, exposição e até mesmo literatura? Ou aquele apartamento é o bunker deles contra o mundo inimigo? Um útero?
O artista está a serviço da verdade e da liberdade. A experiência da alteridade permite a compreensão da subjetividade do outro. A solidão da Eugênia e do Fausto empurra eles para essa experiência. Vejo mais como um útero, como você diz. Eugênia pensa corrigir o texto do jovem aprendiz. Ali no pequeno apartamento a plateia está garantida, o público veio. Fora dali o público é escasso. Mas a luta por um público maior deve continuar, daí o Grito.

• Na página 112, é possível ler: “Se a gente escrever pensando no que vão dizer, pode ter certeza de que não sairá coisa boa, eu disse a ele. O nosso papel, no caso, é compor. Gostem ou não”. A partir do diálogo entre personagens, pergunto: Como vem sendo a recepção de Grito? Os leitores conseguem encontrar sinais, os diálogos literários, as obras citadas e as insinuadas, até nas entrelinhas, deste seu livro?
As leituras serão inevitavelmente diferentes. A frase “gostem ou não” remete, assim quis, para um solipsismo para onde Eugênia se viu empurrada pela idade e pelo mundo. Resta para ela a independência da ficção.

• Eugênia tem 82 anos, Fausto, 19. “Cuidado com essas meninas desmioladas, Fausto. Elas não te trazem nem segurança nem afeto. São todas umas interesseiras.” Eugênia, que enuncia a frase, tem interesse em Fausto: “Você tem uma carreira brilhante pela frente e uma parceira fiel. Parceira que te protege, te ensina e te mantém”. Eugênia, talvez com boas origens, não tem tanto futuro. Como elaborou a personagem? O que ela representa? Tem relação com os muitos idosos de Copacabana?
Tratei do erotismo na velhice. Estava lendo sobre o romance (na vida real) entre Marguerite Duras e seu jovem amante.

 

É o fenômeno da filosofia liberal. As redes potencializam o ódio e as paixões de uma maneira assustadora. Saem berros através das letras maiúsculas nos posts.

• Grito se passa em Copacabana. Há observações a respeito do comportamento, em especial de jovens. Por que Copacabana? O que Copacabana, ou a população de Copacabana, tem que é peculiar, único e diferente, por exemplo, de Ipanema e Leblon? E ainda: com quais autores que já recriariam Copacabana literariamente Grito dialoga?
Copacabana é a fusão do Brasil. Ricos, pobres, profissionais da noite, do dia, turistas perdidões, lojas, bares e restaurantes para todos os gostos, barulho e poluição nas ruas internas, vendedor de paçoca, mate e pipoca, calçadão imenso e o mar enorme esperando a gente. O mundo sem fronteiras está ali. Ipanema e Leblon têm menos personalidade nesse aspecto. Rubem Braga está presente quando se fala de Copa.

• O livro trata de várias questões, inclusive há uma observação a respeito das redes sociais. “As redes sociais, de certa maneira, acabam por fazer algo parecido com a catarse provocada pelo teatro. Dá para purgar um pouco as paixões.” O que mais poderia dizer sobre o tema? Observa o comportamento de amigos, de personalidades e desconhecidos, mas amigos virtuais, no Facebook e no Twitter, por exemplo? Há muitos gritos nas redes? O que mais poderia dizer a respeito do assunto?
Penso que foram esses suportes tecnológicos — Face, internet, etc. — que contribuíram (ou causaram?) a eclosão da autoficção. O eu se separa do universo. Apagam-se as referências obrigatórias do mundo comum a todos e se valoriza o prazer egocêntrico da criação pessoal. É o fenômeno da filosofia liberal. As redes potencializam o ódio e as paixões de uma maneira assustadora. Saem berros através das letras maiúsculas nos posts.

• Grito também trata da discriminação racial no Brasil. O fato de Fausto ser negro não deve ter sido uma escolha sem reflexão. Poderia comentar o quanto e de que maneira o seu livro discute a questão do negro no Brasil, no caso, em Copacabana?
Um dos preconceitos na sociedade brasileira é o preconceito racial. Mas há reações positivas. O amor em tempos do 21 é uma delas. A pessoa ama outra pessoa, não importa a sua idade, a sua cor, o seu gênero sexual, etc. Essa ideia avançou muito no século 21, ainda bem. Grito batalha pelo fim dos preconceitos. A literatura é um dos veículos da consciência da sociedade.

• Na página 35, um personagem fala, ou que pode ser entendido como um grito: “Liberdade nunca é demais, meu senhor”. Grito é uma obra que discute, também, a liberdade? O que é liberdade para Fausto? E para Eugênia, o que é ser livre?{
A literatura é útil para a política também quando ela dá voz a quem não tem, mas, principalmente, quando ela fornece à política os ingredientes para poder se questionar. O Italo Calvino tem uma reflexão muito legal sobre isso. Tanto para a Eugênia quanto para o Fausto as peças de teatro não têm uma ideologia própria, elas constituem o lugar onde as ideologias se confrontam, se desgastam e se anulam. É esse espaço da arte que é a liberdade. Eugênia sabe, Fausto está ainda aprendendo. É perigoso pactuar com o mal. O Fausto pensa que isso é sinônimo de liberdade, isso de poder escolher, mesmo pensando dar uma rasteira no capeta mais lá na frente

• As falas das personagens são um dos aspectos que se destacam em Grito, pelo cuidado, pela precisão. Na página 140, uma personagem diz: “Busco a sonoridade das palavras”. Grito é um livro para ser lido em voz alta? Elaborou o livro linha por linha, palavra por palavra?
Trabalhei muito tempo no livro, cortei muita coisa, refiz frases, chorei, ri, e a gente não sabe o que é que vai dar no final. As partes teatrais são feitas para se ler como numa atuação teatral. Mas sei que isso não vai acontecer porque se trata de um romance. O enxugamento, a que você se refere, na verdade uma autoflagelação, fiz pensando no velho Graça, um dos meus mestres.

• Por fim, a epígrafe de Grito é um grito também: traz um fragmento de A hora da estrela, de Clarice Lispector, narrativa na qual delírio e realidade se fundem, o que também se dá em Grito, em especial, no desfecho. O livro de Clarice foi um deflagrador de Grito?
Pensei na Macabéa, na mercedes, na morte e na genialidade da Clarice. Os claricianos não curtem muito esse romance, e acho ele o melhor da Clarice. A epifania do final do livro dela me serviu para pensar o final do texto do Grito.

>>>LEIA resenha de Grito, romance de Godofredo de Oliveira Neto.

Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

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