Reciclagem

Conto inédito de Natália Nami
Ilustração: Tiago Silva
04/06/2016

— Todo mundo sorrindo.

Um, dois, três, clique. Missão cumprida. Menos pior do que se a dentuça com o tablet na mão tivesse falado Todo mundo dizendo xis. Ou pênis. Detestava foto em grupo, abominava. A meia-lua de engravatados desfez-se e o cliente japonês de óculos esverdeados já vinha atrás dele com o intérprete. Samuel chegou a tomar fôlego para soltar um Excuse me e explicar que sentia muito mas precisava usar o mictório, quando o cliente — diretor-chefe da montadora que havia acabado de desembolsar um milhão de dólares na campanha publicitária de cinquenta segundos — estendeu-lhe a mão dizendo, sem intérprete mesmo, “Foi um prazer, doctor Sémuel”.

Samuel apertou-lhe a mão de volta, num esforço hercúleo para não sorrir demais. Aquele “doutor” lhe precedendo o nome, mormente quando proferido por figurões internacionais exalando o perfume do dinheiro por todos os poros, provocava-lhe nas entranhas um calafrio de bem-estar. Ainda que já estivesse naquilo há tanto tempo. Ainda que já devesse estar acostumado.

Despediu-se do diretor-chefe e de todos os outros japoneses com um aceno rápido e ao mesmo tempo gracioso de cabeça e, como numa coreografia, tirou o celular de um bolso e a caneta de outro, assinando (e lendo antes) dois relatórios trazidos pela secretária, conversando no viva-voz em castelhano com o primo da ex-esposa que reclamava como tudo estava caro em Aspen e rodopiando o pescoço nos últimos acenos aos japoneses que tinham ficado para trás a fim de repetirem o cafezinho. Quando deu bom-dia ao ascensorista em uníssono com o ruído que fizeram os saltos altos da executiva ruiva ao chegar mais para o canto do elevador e lhe ceder espaço com um sorriso, achou que poderia morrer. Ou explodir. Há quanto tempo era feliz assim? Há quanto tempo cada dia era moldado naquela escala de semiperfeição, em que até os pequenos problemas e aporrinhações vinham na medida exata?

Resolveu almoçar no parque. Sabia que o contato assim estreito com a natureza o aproximava de um passado do qual ele queria distância, mas o grau de adrenalina estava alto, as serotoninas ou ocitocinas ou o raio-que-as-parta transbordavam e, se bobeasse, ele se afogaria naquela calda febril.

— Toca pro Jardim Botânico.

O taxista soltava baforadas de quase embaçar o vidro e Samuel nem aí. Chofer fumando durante o expediente andava não só cafona mas uma raridade, e aquela fumaça azulada virava quase o incenso de um ritual. Samuel pagou, deu gorjeta e saiu do carro arrancando a gravata, com o paletó já no ombro. Na aleia das palmeiras foi cumprimentando desconhecidos, rodou pelo Chafariz das Musas falando sozinho e foi procurar algo para comer. O celular tocou antes que se sentasse. Era Ingrid, a gaúcha que conhecera no Arpoador e com quem sairia hoje à noite, tudo dando certo. Atendeu dizendo tchê, mãos e testa afogueadas, tropeçando nos assuntos, nem a deixava falar. Propôs o programa da noite, a peça, o cardápio, e ela só rindo. Samuel gostava assim: lourinha, novinha e risonha. Sem contar que Ingrid era inteligente pra burro.

Riu do próprio paradoxo, abriu o botão de cima da camisa e sentiu a pontada na cabeça. Sentou-se. Em torno de uma mangueira (ou mogno) um grupo de universitários sorria todo paramentado para um fotógrafo profissional. Um, dois, três. Tédio. Desabotoou de vez a camisa empapada de suor e deu a primeira dentada no sanduíche; aquela gente não iria mais sair dali? Cerrou os olhos. Alerta. Deu um suspiro. Alerta máximo. Quis provar-se que estava senhor de si, abriu o laptop e acessou a rede social a esmo. De beca e aqueles olhos parados os fotografados pareciam corujas enfileiradas. Escolheu um perfil. A esmo. Roland W. Müller. Ou seria Rolland, com dois eles? Um, dois, clique — porra, o flash machucara-lhe os olhos, pra que tanta foto com jaqueira? Ou mangueira, palmeira, não entendia de árvore: quando ouviu alguém gritar sumaúma, achou que era flash em tupi-guarani.

Perfil encontrado. Mas antes que a página carregasse, fechou o computador. Outra pontada, e desta vez tão forte que cogitou não voltar ao escritório. Passaria no apartamento de Ingrid antes da hora ou, melhor ainda, ligaria para Jaqueline e mataria dois coelhos com uma paulada só. Que que tem, foi-se justificando à meia voz como se o pai ou a mãe estivessem ali plantados à sua frente. Que mal tinha? Era maior de idade, bem-apessoado, desimpedido. Se a vida do homem começava a ser passada a limpo aos quarenta, ele tinha ainda um ano para rascunhar à vontade.

Jaqueline era uma morena alto-astral que ele tinha conhecido num congresso; topava qualquer parada. Já Ingrid, um ponto de interrogação: aparentava uma universitariazinha meio careta, meio porra-louca, mas também podia ser uma espertalhona atrás do dinheiro dele. O que não o incomodava nem um pouco, aliás.

Abriu o laptop outra vez. Rolland estava ali esperando, com o mesmo sorriso sem expressão, os olhos forçadamente ingênuos. Samuel já havia, ao longo daquelas duas décadas, procurado o nome a esmo e a esmo visto a foto, mas nunca lera nada do perfil. Não sabia nem qual profissão o ex-vizinho e ex-colega de classe tinha seguido. Pesquisador na universidade federal do Rio de Janeiro. O puto morava ali perto. Por que tanta irritação? Porque era pensar no passado e baixar aquela enxaqueca. Ele não tinha feito nada errado. Um, dois, clique. Vou ser engenheiro e construir pontes, anunciara Samuel um dia ao pai, que acreditou. Quando veio a oportunidade de estudar na Europa, bastando vencer o concurso dos jovens inventores promovido pelo estado em parceria com a escola estrangeira, Samuel nem pestanejou. Venceria.

A terceira pontada na cabeça veio junto com uma trovoada. A tarde encrespara e ele nem vira. Raspou o resto de maionese da boca com as costas da mão, fechou o computador e viu os estudantes agora lá longe, posando sem cenário. Vestidos daquele jeito pareciam um cortejo fúnebre. O estômago doía, a cabeça. E logo hoje que o dia tinha começado tão bem. A única coisa pior do que aquelas fotografias em grupo era ficar dando marcha a ré na memória. Não virara engenheiro mas enriquecera. Era empresário. Executivo. Ci-i-ou, o tal Chief Executive Officer que já vinha até com pronúncia importada: se quisesse cuspir dinheiro, cuspiria.

Jovens inventores brasileiros na Europa. Fazer um projeto, detalhar os cálculos, mandar pelo correio, naquele tempo tinha negócio de correio. Do próprio projeto Rolland nem deveria lembrar-se, mas o amigo quietinho e CDF que sonhava fazer pontes, com sua modéstia que chegava a dar ânsia de vômito, bolara uma proposta genial, ao menos para a época. Um carro movido a lixo. Isso quando reciclagem era palavra que a gente só conhecia mais ou menos e em inglês ainda por cima, feito bullying hoje que nego diz bule. Rolland pedira para ele acrescentar seu nome. Se não se importasse, completara. Não importasse o cacete: o trabalho não era em dupla, ia argumentar, mas Rolland sorria com os olhos de água parada de piscina no canto da sala de aula; viria a proposta, ele já pressentia, seriam instantes antes do bote e ele, Samuel, pássaro hipnotizado, cairia como um idiota, vítima inocente. “Toma aqui, Samuca. Essa história de Europa pode não dar em nada mas com essa grana tu tá feito”. Podia não dar em nada mas deu: o invento, seu invento anônimo alônimo apócrifo conquistara o primeiro lugar. No nome de Rolland, Rolland ganhando os parabéns, as entrevistas, fotos, flores, beijos, artigos, presentes, reportagens. Passagens. Os três anos em Londres. Rolland passou a ser conhecido como jovem prodígio e, embora não se tivesse sabido de nenhum carro movido a lixo rodando pela cidade, só se falava nele como cientista, inventor, inventor, cientista. Samuel primeiro sentiu nojo. Depois achou justo consolar-se com aquela primeira propina. As pontes de concreto, os vergalhões, o cimento armado e o aço das fundações foram aos poucos substituídos pela névoa das trocas de favores. Tornara-se um perito na engenharia das palavras encapadas, maviosas e melífluas.

Perguntou-se por quê.

Apertou a testa. Estava ali no parque podendo pensar no encontro com a loura ou maquinar um outro com a morena e ficava a dar chibatadas no próprio lombo. Vítima inocente. Desde quando? “Tu tá feito.” Um, dois, três, todos dizendo cheese, com sotaque. Abominava fotos em grupo. Mas obedecera assim mesmo, menino que era. A mãe de Rolland, burra, fora arrancá-lo do campinho de futebol dizendo que estavam chamando todos para tirar retratos. E justo na hora em que ele estava para marcar o primeiro gol. A gurizada era parente de Rolland, tudo alemão louro de olho azul. Primeiro fotografaram os adultos. Mandaram Samuel esperar. Depois foram os jovens, um bando de adolescentes magrelos, ruços. Ele esperando. Aí finalmente alguém gritou, “Agora as crianças”. Foi indo junto com Rolland mas logo sentiu uma mão comprimir-lhe o ombro. Era o pai de Rolland: “Você não, rapaz. Vai destoar”. Rolland deu de ombros e o pai sorriu, arregalando os olhos de água parada de piscina e fazendo sinal para que ele aguardasse. Samuel puxou o amigo pelo braço e falou quase cuspindo: “Explica pro teu pai que a minha mãe é branca”. Rolland pareceu ofendido: “Mas você não é”. Um, dois, três. Clique.

Natália Nami

Nasceu em Barra do Piraí (RJ). É escritora e tradutora. Autora dos romances A menina de véu (indicado ao Prêmio São Paulo de Literatura 2015 e ao Prêmio Literário José Saramago 2015) e O contorno do sole do livro de contos O pudim de Albertina.

Rascunho