Um escritor solitário e eufórico

"O ano em que vivi de literatura" narra a história de um homem apaixonado pelos excessos
Paulo Scott, autor de O ano em que vivi de literatura
24/05/2016

O protagonista de O ano em que vivi de literatura é Graciliano, um escritor que sai da cidade natal Porto Alegre para viver no Rio de Janeiro. Depois de ganhar muito dinheiro com um grande prêmio literário, ele embarca em uma rotina de exageros: muitos eventos, muito sexo, muita bebida alcoólica e, principalmente, muita insegurança.

Ao contrário do que o título faz pensar, o livro do gaúcho Paulo Scott quase não menciona literatura. Graciliano, na verdade, mal escreve — embora esteja devendo produção para uma editora e recheie sua página no Facebook de textos — e muito menos lê.

Por outro lado, com a fama que o prêmio lhe deu, o protagonista vira presença desejada em encontros e festas do meio intelectual. E, ao longo do enredo, essa série de eventos fica cada vez mais melancólica.

A história se passa em 2011. Nesse período, as redes sociais já estavam ditando parte do nosso comportamento, nosso círculo de relações, com batalhas de ego, bajulação e condescendência. E assim funcionava para Graciliano. É difícil contar quantas vezes o Facebook aparece no livro. O protagonista nos narra uma sequência propositalmente cansativa de postagens, comentários, respostas aos comentários, flertes. Ele monitorava tudo o tempo todo, e era dependente da adoração que a internet lhe garantia.

A razão para a vida de excessos de Graciliano não parece ser nenhuma além de deslumbre. De repente, com muito dinheiro e reconhecimento em mãos, ele se vê em um seleto círculo de relações com escritores, editores, jornalistas, críticos literários, curadores, marqueteiros, e quer tirar o proveito máximo disso — principalmente no que diz respeito às mulheres.

Mas o convívio com essas pessoas também o faz se revelar um homem solitário e carente. Um dos poucos amigos que o acompanha é Ildefonso, colega de ensino médio e da faculdade de História. Na nova vida de Graciliano, tudo é intensidade, desgaste, exagero.

O livro é uma sátira dos bastidores da literatura. Em meio à rotina festeira de Graciliano comenta-se, mesmo que nas entrelinhas, sobre critérios amplamente subjetivos na escolha de obras literárias premiadas, sobre editoras que valorizam ou não os escritores que mantêm, sobre relações de interesse entre escritores e editores.

Família
Além das relações fluidas e frias com amigos e mulheres, os conflitos familiares alimentam a angústia de Graciliano. Paulo Scott desenha muito bem uma outra peça que colabora na formação do personagem: a relação tensa que o escritor tem com o pai. Os diálogos entre os dois ocupam poucos trechos do livro, mas o incômodo que esse vínculo familiar provoca no protagonista está sempre presente.

Um dos motivos para os problemas na família é o desaparecimento da irmã de Graciliano, Flávia. A razão do sumiço não fica muito clara na história, que dá apenas algumas pistas do que pode ter acontecido com ela. É como se cada integrante da família tivesse um trauma diferente sobre essa perda e um posicionamento diferente sobre o paradeiro de Flávia. Discutir sobre isso já é rotineiro para eles.

A irmã desaparecida parece ser a única pessoa com quem Graciliano realmente se identificava, a única por quem mantinha o mínimo de afeto — há um belo trecho em que ele descreve a lembrança de um passeio com Flávia e amigos.

Entretanto, além dessa ausência mal explicada, as escolhas que o protagonista fez na vida também causam desconforto ao pai. Ele nunca conseguiu superar o fato de Graciliano ter abandonado a carreira de professor universitário de História em Porto Alegre para “virar vagabundo” no Rio de Janeiro.

Feminino
Há muitas mulheres na saga de Graciliano, mas poucas delas têm nome ou importância na vida dele. Além da irmã desaparecida e de uma ou outra namorada mais marcante, como Lenara e Janaina, boa parte das outras mulheres é referenciada com pouca formalidade: a “amante do jornalista”, a “deusa”. Um pouco de sexo, e elas desaparecem.

Parte desses relacionamentos começou no mundo virtual, e alguns também reagem de acordo com ele. Isso fica claro em uma passagem do livro em que Janaina reclama de um poema que Graciliano postou no Facebook, com o título “J” — o que parece ser uma provocação para ela e rende uma longa discussão por telefone.

Graciliano se envolveu também com Patrícia, uma doutoranda em Letras que protagoniza um dos capítulos de O ano em que vivi de literatura. Ela se separa do personagem principal por vontade própria, e essa atitude deixa Graciliano no mínimo desconfortável e sensibilizado. Mas assim que ela sai de cena, ele volta ao comportamento de sempre.

Outro momento de insegurança ligado aos relacionamentos acontece com Lenara. Como ela foi uma das juradas do prêmio que Graciliano recebeu, o escritor convive com a dúvida: foi mesmo a qualidade do seu trabalho o fator determinante para a premiação? Ou foi apenas o interesse sentimental da jurada?

A maneira pouco cortês de se referir às mulheres não é exclusividade do protagonista. Depois de ter uma entrevista publicada em um grande jornal do país, Graciliano se encontra com o editor Romero e ouve o amigo perguntar com quantas “marias lombadas” e “marias resenhas” ele já tinha se relacionado desde a aparição no jornal.

O meio literário
O livro é uma sátira dos bastidores da literatura. Em meio à rotina festeira de Graciliano comenta-se, mesmo que nas entrelinhas, sobre critérios amplamente subjetivos na escolha de obras literárias premiadas, sobre editoras que valorizam ou não os escritores que mantêm, sobre relações de interesse entre escritores e editores.

O meio acadêmico também está no alvo da sátira — em certo momento, Graciliano se refere aos professores de História como um “clube”, além dos donos de blogs famosos de literatura, escritores premiados, editores, críticos. O editor Romero, além do próprio Graciliano, é um dos principais representantes dessa caricatura da “cena” literária.

Sabe, Graciliano, não sei se é o seu caso, porque não sou seu analista e muito menos uma dessas suas namoradas metidas a gênio da raça, mas poderia apostar que, se não de todo, pelo menos em parte, você está sofrendo da consciência de não ter controle algum sobre a importância que seus livros vão ter.

Angústia
Muitos autores já se dedicaram a escrever sobre o próprio ofício. Não é difícil encontrar livros sobre escritores em crise, por exemplo. Talvez a maior diferença em O ano em que vivi de literatura seja justamente a falta da literatura na rotina de um escritor que conseguiu realizar o desejo de muitos: sustentar-se exclusivamente do dinheiro que esse trabalho lhe garantiu.

A história tem algo deprimente, talvez pela repetição das ações de Graciliano: festa, sexo, início de relacionamentos, fim de relacionamentos, indiferença, briga com o pai, saudade da irmã. Em alguns momentos, a atitude dele, impulsionada pela infelicidade, beira o ridículo — como acontece no trecho em que ele entra num sebo, acompanhado de amigos recém-conhecidos.

Além do próprio enredo, o ritmo da narrativa ajuda a dar o tom desse período conturbado da vida de Graciliano: um tempo que passou acelerado, sem folga. Mas a angústia dele é a angústia de todo mundo, um sentimento que talvez não seja exclusivo de quem escreve.

O ano em que vivi de literatura
Paulo Scott
Foz
256 págs.
Paulo Scott
Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1966, e vive no Rio de Janeiro (RJ) desde 2008. Publicou cinco livros de poesia, como Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo, vencedor do Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte em 2014. Também escreveu cinco livros de prosa, como Ainda orangotangos e Habitante irreal — Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional em 2012.
Gisele Barão

É jornalista

Rascunho