A solidão-vazio pós-apocalíptica

A vida é mesmo uma aventura solitariamente acompanhada?
A poeta portuguesa Ana Marques Gastão
09/01/2016

Ana Marques Gastão pertence à estirpe dos escritores que sabem-gostam-precisam ouvir as verdades-mentiras dos outros ficcionistas-poetas. Um rápido mergulho na web rapidamente revela essa condição em ebulição.

É impressionante a quantidade de entrevistas realizadas pela poeta-ouvinte com os autores das mais variadas cores-sabores literários: Ana Hatherly, António Lobo Antunes, António Ramos Rosa, Floriano Martins, Gastão Cruz, Gonçalo Tavares, Helder Macedo, José Saramago, Luís Quintais, Manuel António Pina, Manuel Gusmão, Nuno Júdice, Pedro Tamen, Rosa Alice Branco entre outros. Muitas falas-e-falácias acumuladas. Afinal, foram mais de vinte anos de atividade jornalística.

Qualquer entrevista é um diálogo-monólogo em voz alta que oculta-revela muitíssimo sobre o entrevistado, é verdade, mas sem deixar de revelar outro tanto sobre o entrevistador. Atenção, pesquisadores: procurar o epicentro da poeta Ana Marques Gastão no epicentro de todas as entrevistas feitas pela jornalista Ana Marques Gastão seria um trabalho-tese interessante. Deixo aqui a sugestão.

A vida é mesmo uma aventura solitariamente acompanhada? Esse paradoxo de fato é um dos principais tópicos distópicos da lírica de Ana Marques Gastão. Tópico que muitas vezes se apropria do mote do mundo-sem-ninguém dos filmes & romances pós-apocalípticos.

Nessas narrativas extremas a humanidade foi dizimada por uma pandemia ou uma guerra total. Quase nada sobrou. Não há mais nações ou civilização. As cidades estão mortas, as instituições desmoronaram e as últimas pessoas-zumbis vagam nas ruínas ou no deserto-desespero. A poeta-jornalista é a última correspondente especial desse mundo-devastação.

Até mesmo quando conversa com Deus, o sujeito lírico de seus móbiles catalisadores pressente que está apenas falando com o silêncio do vácuo. Sorte sua que o vácuo não está vazio. Distantes da polícia-do-pensamento, no abismo escuro vivem os poetas-espectros de outras épocas, que também monologaram com a eternidade-indiferença, entre eles Fernando Pessoa & seus heterônimos. São poetas-espíritos cuja fala-entusiasmo atravessa e fecunda o discurso dos vivos, fazendo do cinismo uma espécie peculiar de catecismo.

Nas assimetrias-simétricas de Ana Marques Gastão as fibras da solidão acompanhada alternam momentos de euforia & niilismo. “A angústia é a vertigem da liberdade”, Heidegger escreveu ao refletir sobre a finitude do cotidiano-existência. Porém os músculos e o instinto vital não são totalmente esmagados pelo sentimento de abandono. Mesmo na amargura-melancolia vibra a feroz vontade-de-viver contra os velhos valores-substantivos absolutos: corpo & repouso, riso & espírito. O jogo de oposições não multiplica limites.

Estamos a um passo do fim da civilização moderna, que desmancha no ar (Marx). A função referencial da linguagem começa a se desfazer, a comunicação cotidiana e o discurso científico começam a se fragmentar, permitindo que a função emotiva e a função poética ocupem totalmente o palco. Indigentes caçadores-coletores procuram água & comida nos supermercados apodrecidos. O vazio e o silêncio em breve dominarão a consciência-inconsciência da fala-poesia volúvel, pouco confiável, que transforma uma sombra em anjo, uma coluna de vapor em premonição.

Em todos os cruzamentos oblíquos de Ana Marques Gastão as imagens poéticas atuam por acumulação, criando uma superimagem transfiguradora. Linha após linha, a simetria do som-sentido é abalada pelo insólito-nonsense característico das metáforas-metonímias-sinédoques da lírica xamânica.

Em certos casos, a superimagem transfiguradora incorpora-revigora os velhos tópicos da literatura-de-terra-desolada, da ficção-de-desastre-global. Nessa hora a atmosfera mórbida do poema canônico de T. S. Eliot mistura-se à atmosfera insalubre do romance igualmente canônico de Walter M. Miller Jr. A quietude abafa o movimento das nuvens & estrelas, os grandes monumentos desabaram. A hecatombe durará mil anos. Não há mais trânsito rodoviário, marítimo & aéreo.

A vida é mesmo uma aventura solitariamente acompanhada? Esse paradoxo de fato é um dos principais tópicos distópicos da lírica de Ana Marques Gastão.

A fantasia poética-mental, manipulada pelo fluxo de energia & desejo, reduz a realidade a uma ideia abstrata. Experiência solitária, a logopeia mágica e encantatória deixa claro mais uma vez que “a linguagem eficaz é a que não nos distrai do significado”, conforme a fórmula de Benedito Nunes. Mesmo que o significado não seja significativo, eu acrescentaria.

As assimetrias-simétricas da poeta-vidente magnetizam-atraem a atenção para dentro da escuridão ontológica, leve & cega. Sua discreta-indiscreta melancolia revela não somente uma cicatriz audível, mas uma sub-reptícia sensibilidade oriental, raiz de toda a lucidez.

Essa redução da realidade a uma ideia abstrata apoia-se na sagaz teoria do iceberg de Ernst Hemingway. Para Hemingway o bom conto tem de ser como um iceberg: o mais importante da história não deve ser contado, deve ficar oculto bem abaixo da superfície da água; a narrativa deve ser construída com o não-dito, o subentendido, a alusão.

Na verdade, a teoria do iceberg, formulada para a prosa de ficção, agora devolve à lírica o que sempre foi propriedade sua: o domínio do não-dito, do subentendido, da alusão. Sem precisar tagarelar sobre os segredos sujos da humanidade, poucas palavras-acima-da-superfície-da-água revelam o fim épico da civilização.

Tudo é como deveria ser, qualquer detalhe é uma parte importante da vasta iluminação profana. “Há música em seus poemas, no ritmo da escritura; não é formal, é oscilante, mesmo quando uma desconfiança ou amargura atravessa a melodia” (Paula Cristina Costa). A quietude é a sabedoria-sem-palavras da doutrina oriental, incomunicável por meio da linguagem verbal.

Devagar fomos conduzidos para a paisagem do vazio comunicativo, do não-dito, vácuo tão poderoso que seu silêncio é capaz de despedaçar os discípulos menos preparados para a experiência-solidão plena. Estamos num extenso-onírico não-lugar, por onde simplesmente passamos, sem jamais fincar raiz.

A gigantesca massa oculta de gelo, sufocada bem abaixo da superfície da água, é o grito silencioso do inconsciente coletivo. Os curiosos tentam escutar a qualquer custo essa cacofonia-algazarra. É o alarido do silêncio, o rumor dos deuses. Na vastidão deserta-gelada o que restou da humanidade delira-alucina-endoidece. Qualquer reentrância é uma armadilha, todos os interstícios são mortais. Não há mais comida & água, as plantações estão calcinadas. Grandes criaturas de pesadelo movimentam-se entre as nuvens, indiferentes às formigas-homens em extinção.

A expansão das possibilidades é o que mais interessa a essa voz lírica em convulsão. O rumor dos deuses já se dissipou há muito tempo e as forças da natureza enfraqueceram, minadas pela contração-expansão racionalista. O que sobrou de interessante afora o chamado da morte?

Dobrada sobre si mesma, a paisagem do vazio comunicativo revela outros desfiladeiros & promontórios no presente flutuante de que falava Mario Faustino. O sussurro dos ventos percorre-inunda o espaço despovoado. “Não é o ser humano que interroga, é a linguagem que nos interroga” (Faustino).

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho