Biscoitos da sorte

Aforismos de Miguel Sanches Neto dão continuidade ao livro "Linhas órfãs"
Ilustração: FP Rodrigues
09/01/2016

VOCÊ TAMBÉM É ESCRITOR?

No Brasil, a profissão de escritor é a nossa maior ficção.

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Lemos os livros produzidos na juventude como literatura estrangeira.

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Um texto só se faz verdadeiro ao interromper tarefas urgentes.

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Haicai: a força do mínimo; não o mínimo de força.

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Vento nas roupas estendidas

inflando ventres de mulher

nas saias e nas camisas.

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O bom editor está inteiro num livro, mas sem ser visto.

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Para diminuir a vadiagem e melhorar a literatura, criem-se presídios para escritores. Eu me candidataria a uma vaga.

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Os livros que abandonamos pelo meio também nos pertencem integralmente.

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Mesmo os livros que não lemos, amando-os a distância, cumpriram o seu projeto.

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Limpeza de fim de ano
Se as estantes com os livros amados juntam tanta poeira, imaginem as nossas velhas ideias.

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Boa parte do que se apresenta como crítica ou é balcão de negócio ou facção terrorista.

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Ser entendido até por quem não te compreende.

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Quem escreve romances espalha solidão ao seu redor.

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O poeta produz frases de efeito invariavelmente com defeitos.

Ilustração: FP Rodrigues

O grande romance do agora é como escultura anônima na areia, refeita depois de cada maré cheia.

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Morrer de vez em quando em muito melhora a qualidade de sua obra.

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O memorialista faz turismo em si mesmo.

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Ler um poema é a forma mais plena de rezar. De rezar ao Deus Nada.

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A morte nesta cozinha.

Uma borboleta vai pro lixo

com os restos de comida.

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Há o escritor por insight e o escritor por insistência. Um tem uma inteligência felina; o outro, uma inteligência bovina.

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Revisar um livro de sua autoria é olhar-se minuciosamente no espelho, tentando identificar as imperfeições do próprio rosto.

Ilustração: FP Rodrigues

Matemática da criação literária
A soma de várias brisas nunca formará uma tempestade.

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Escrever um romance equivale a estar apaixonado por alguém que nos aguarda. Queremos voltar o quanto antes para casa.

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São os livros que escrevemos que, na verdade, nos escrevem.

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Seu papel de parede era uma camada espessa de bons livros.

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Socialmente, o escritor não passa de um órgão excretor.

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A situação ideal do escritor é viver internado. Em si mesmo. Na biblioteca. No próprio quarto.

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Não confundir preguiça com paciência; dedicação extrema com pressa. Todo artista tem um ritmo que o inventa.

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Afirmação de identidades problemáticas
No vidro traseiro de um carro ferrugento, o proprietário escreveu: SOU POETA.

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Alguns escritores param de escrever ou começam a se repetir na maturidade talvez por deixarem de se interessar pelas gerações mais jovens.

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A literatura não entra em mentes literais.

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Toda obra de arte é financiada pela dádiva.

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Em textos literários, o uso de Photoshop está liberado.

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Somos todos refugiados da palavra.

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O memorialista, esse violador de túmulos.

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Todo poema que se presta permanece meio inédito.

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Por um segundo

a tarde de domingo.

Deserto fim do mundo.

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Nomes hoje obscuros vivem um recôndito futuro.

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O poder dos medíocres é o último modismo.

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O poder dos autênticos se chama tempo.

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Quem menos sabe escrever é quem mais disserta sobre a escrita.

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Não precisamos da linguagem para representar a incomunicabilidade.

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Um livro falso já se revela na foto do autor na capa.

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A escrita, mesmo a mais autobiográfica, como projeto extremo de anonimato. Sair de cena para dar lugar às palavras.

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Os bens do escritor condenado por desvio da realidade não puderam ser apreendidos. Eram todos fictícios.

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Autores hoje anunciados como centrais passarão às notas de pé página.

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É preciso escrever cada capítulo de um romance como se fosse a sua primeira página e tudo ainda estivesse por ser dito.

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Só podemos ser de fato influenciados por aquilo que nos revela. E aí não há nenhuma forma de influência.

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A palavra não tem pressa.

Ilustração: FP Rodrigues

VERDADEZINHAS MEIO VADIAS

Os falsos nunca fazem falta.

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Não há maior alienígena do que quem retorna à terra da infância perdida.

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Mesmo para o novo rico, todo pobre tem problemas de origem.

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Quem muito trabalha não tira folga por não ter o que fazer nessas horas.

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Cartaz para um lava-jato
Lavamos consciências sujas.

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Os argumentos de seu interlocutor são sempre expressos em uma língua estrangeira.

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Outrora, encrenqueiro-mor. Hoje, envelhece como conciliador.

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Qualquer pessoa solitária é maior do que uma passeata.

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As pessoas determinadas são como pregos; ou entram na madeira ou vergam sob as marteladas.

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Se finjo gostar de algo, minha face me desmente no ato.

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Reconhecer que está errado e deixar tudo do mesmo jeito só ajuda a aumentar a dimensão do erro.

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Um bom curso universitário deve ser uma clínica de envelhecimento.

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Nenhuma luta se faz por si só justa.

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Exibir teu corpo despido não é uma declaração de princípios, apenas provocação dos sentidos.

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Participa de manifestos como quem vai a muitas festas.

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Neste período de tanta falação, muitos trocariam um dos ouvidos por mais uma boca.

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A verdade anda só; a mentira, mal acompanhada.

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Aqueles que odeiam nunca tiram férias.

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Se apenas uma pessoa desfrutar da beleza ainda assim ela será eterna.

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Pertencia à espécie dos que nada esperam.

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Fazer, sim, protestos. Primeiro contra nós mesmos.

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Ninguém nunca convence aqueles que têm os próprios interesses.

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As terras mais distantes em que estive se chamam infância.

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Os intelectualmente surdos não dialogam.

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A menor certeza já é uma forma de surdez.

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Os domingos doem o mínimo.

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A maioria de nossas crenças: máscaras que se colaram à nossa cara.

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É preciso fazer política sem se fazer político.

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Turista, esse animal que paga para enfrentar filas.

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Quando você não quer nada além daquilo que só você pode fazer por você mesmo, o mundo fica mais ameno.

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Só ao fecharmos os olhos conseguimos ver o melhor da paisagem.

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Meritocracia no Brasil é o princípio de favorecer os bem-relacionados e os que têm berço.

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Só é possível crer naquilo que não vemos.

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TCU
Na prestação de contas de nossos próprios sonhos, somos sempre reprovados.

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Apenas no turbilhão da juventude podemos afirmar as bobagens mais rudes.

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Não existe maior protesto do que pensar.

Ilustração: FP Rodrigues

AMOR, MORTE, ESSAS COISAS

“Não foi possível completar a ligação.” Na minha velha agenda, o telefone de tantos amigos mortos.

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Poderíamos amar muitas outras pessoas se não estivéssemos tão ocupados com os velhos trabalhos do amor.

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Na vida nunca dá zero a zero.

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Toda morte é um suicídio em segredo.

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Um amigo perdeu a mãe prematuramente. Aos 106 anos. A morte de uma mãe é sempre prematura.

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Sequelas
Os enforcados acabam afônicos.

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Só se termina um curso de humanidades quando enfim se morre.

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Ter poucas paixões mas intensas, para que uma vida seja suficiente.

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Entras em tua casa que permaneceu fechada por certo tempo como o morto que enfim fica só no próprio enterro.

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Só amamos verdadeiramente aquilo que não nos traz proveito.

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Espírito pacato, vez ou outra se metia em brigas, alegando ser bom para a carreira ter inimigos.

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Festas de fim de ano I
E a doença desejou ao corpo um ótimo ano-novo.

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Festas de fim de ano II
Aquele pior inimigo te desejou alegremente um inesquecível suicídio.

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Festas de fim de ano III
— Sacro tempo de paz! — gritou o homem-bomba antes de mandar tudo para os ares.

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A vida, esse imenso contínuo. O ano-novo desconhece o ano findo.

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Só é possível continuar amando uma pessoa enquanto ela tiver espaços não explorados.

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O tempo desenha em nosso rosto as sombras de um morto.

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Somos órfãos provisórios de nossa própria morte.

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Aqueles que não puderam nascer riem de nossos desesperos.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho