Viver um livro

"Anatomia do Paraíso" fala de uma paixão pela literatura, mas também de uma obsessão
Beatriz Bracher, autora de “Anatomia do Paraíso”
09/01/2016

Paraíso perdido, poema épico escrito pelo inglês John Milton no século 17, foi inspirado no Gênesis da Bíblia e relata, em mais de 10 mil versos, a queda do Homem e a expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Esse clássico da literatura inglesa é o mote de Anatomia do Paraíso, sexto livro da paulista Beatriz Bracher.

No romance acompanhamos Félix, estudante de 24 anos que precisa produzir uma dissertação sobre a obra de Milton. A partir dessa linha condutora, o leitor é apresentado à rotina do protagonista, que vive solitário em um apartamento no Rio de Janeiro, e sua fixação pelo poema do escritor inglês. Mas a história é muito mais do que isso.

Félix mergulha em uma leitura minuciosa. Para produzir a dissertação, o estudante deixa Paraíso perdido penetrar de forma extrema em sua vida, redefinindo seu jeito de pensar, suas relações, seu comportamento, seu caráter — este particularmente deplorável. Ele também reflete sobre algumas passagens do texto, sobre o próprio Milton e as escolhas que o autor fez na composição dos versos.

Quando Félix entendeu a permanência e a importância do que chama mistério, não quando o desvendou, mas quando o construiu, o Paraíso perdido se transformou em um lugar possível de existir. Quando o sentido parou de ser o problema principal, Félix começou a entender os versos.

No pequeno círculo social de Félix estão os amigos Nildo e Vanda, funcionária do Instituto Médico Legal, além de Maria Joana, irmã caçula de Vanda. As duas irmãs, vizinhas do estudante, são as principais integrantes dessa vida obsessiva que ele assume enquanto escreve a dissertação.

A relação de Félix com elas é de amizade, mas não necessariamente de afeto. A impressão é de que ambas existem apenas para levá-lo às vivências de Paraíso perdido de que precisa para concluir o estudo. No centro dessa convivência, estão temas recorrentes na obra de John Milton: a traição, o sexo, o pecado e a culpa. O mergulho nesse estranho universo compromete a capacidade de Félix de medir seus atos, e está na base dos conflitos entre ele e Vanda. Os dois têm personalidades opostas. Enquanto ela é realista e prática, ele é reflexivo e egoísta.

Mulher
O feminino e a maternidade são questões que provocam Félix. Há uma implicância dele, por exemplo, com as palavras útero e ventre — ele analisa insistentemente esses e outros conceitos ao longo do romance.

Paralelamente, as vizinhas vivem seus próprios conflitos. Vanda está grávida, mas a identidade do pai de seu filho e a própria criança importam menos do que as questões internas que ela vivencia — ser mulher, tornar-se mãe, viver uma transformação. Por sua vez, Maria Joana está na puberdade, com todas as confusões internas e a intensidade que essa transição acarreta. Anatomia do Paraíso também é sobre o amadurecimento dela, que fica mais evidente no fim do livro.

O desenvolvimento de Maria Joana é fundamental na obra. Durante parte da história, é como se ela vivesse em função dos desejos do protagonista. A menina passa vários dias no quarto de Félix lendo trechos de Paraíso perdido. E a partir dessa leitura, ele identifica novos olhares sobre o poema.

Não à toa, o bebê que Vanda espera é uma menina. Uma das poucas cenas em que a moça racional mostra mais sensibilidade é quando está no hospital para fazer uma ultrassonografia. Durante o exame, Vanda relata ouvir o som de uma “cachoeira abundante”. A médica avisa que é o barulho do coração de sua filha.

Aquilo era extraordinário, uma enormidade; ela se contraiu, distendeu, chorou. No monitor o feto também se mexeu, tremeu um pouco, afastou e aproximou os bracinhos do tronco, se acomodou novamente. Moveu-se lentamente, num, ritmo aquático, a pequena cabeça, estranhamente grande para o corpo. Ela estava grávida de outra vida, de verdade, uma vida diferente da dela, um presente e um futuro distintos. Sentiu uma amizade astronômica e secreta por sua filha, aquela sapinha transparente. Mais do que amor, a palavra que lhe veio foi amizade.

As irmãs têm um histórico de abuso sexual na família. Assim, Vanda é uma protetora da irmã mais nova. O narrador nos revela que ela ajudou a afastar Maria Joana de uma situação ameaçadora nesse sentido, mas não fica explícito o que ela fez em defesa da caçula. Talvez por essa lembrança da violência, Vanda é mais misteriosa e fria do que os outros personagens.

A densidade de Anatomia do Paraíso está principalmente nessa confusão entre a vida e as divagações de Félix e a história da obra de Milton. A autora consegue unir esses elementos para criar o clima necessário.

Palavra, leitura e análise
O romance é escrito em terceira pessoa, com um narrador que conhece bem os pensamentos de Félix. O livro mistura as reflexões do protagonista (acadêmicas e existenciais), sua fixação pelas diferentes traduções de Paraíso perdido, trechos do poema de John Milton e outras referências da literatura, como Haroldo de Campos e Homero — uma das principais inspirações para a produção do poema clássico. A densidade de Anatomia do Paraíso está principalmente nessa confusão entre a vida e as divagações de Félix e a história da obra de Milton. A autora consegue unir esses elementos para criar o clima necessário. Além dos comportamentos questionáveis que revela na trama, Félix tem um interesse especial pela tradução, interpretação e pelos significados das palavras.

É esse o desamparo que Félix imagina que se passa dentro de Satã quando avista a Terra. O maldito anjo que ele é, e a saudade do que ele conhece. Nunca havia visto a Terra; é capaz, porém, de entender sua beleza, pois a reconhece em si.

Em um sentido geral, Anatomia do Paraíso pode ser sobre a experiência literária e sobre as relações entre homem e mulher. Em uma das cenas em que Maria Joana lê trechos de Paraíso perdido para Félix, ele percebe que a adolescente está desenvolvendo gosto pela leitura. É como se ele enxergasse ali o desenvolvimento do que chama de “vírus que faz a pessoa se deixar levar pela história”. E isso o emociona.

Aprender a ler é uma marca que não abandonará a menina e a tornará distinta. Daqui em diante sua comunhão com o mundo será defeituosa, um sentimento persistente de não fazer parte inteiramente de nada. Os outros ficarão incomodados com sua presença, com alguém que duvida, que vê e não enxerga o que está aqui, mas alguma outra coisa.

A literatura e o sexo são os grandes fatores de transformação da vida de Félix. E Beatriz Bracher consegue penetrar nesses temas sem resvalar em nenhum clichê. Anatomia do Paraíso é ousado e radical.

Pode-se dizer que é a objetividade de Vanda que ajuda o protagonista a voltar à realidade imediata. Apenas depois de uma briga com a amiga, quando Félix revela algumas de suas atitudes doentias, é que ele demonstra certo arrependimento. No fim da história, quando Félix termina a dissertação e parece se livrar da aura de Paraíso perdido, fica surpreso ao notar que seu pequeno mundo continuou a girar apesar de seus devaneios.

Anatomia do Paraíso
Beatriz Bracher
Editora 34
328 págs.
Beatriz Bracher
É escritora e roteirista. Nasceu em São Paulo (SP), em 1961. É uma das fundadoras da Editora 34. Publicou seu primeiro romance, Azul e dura, em 2002. Também é autora de Não falei (2004), Antonio (2007), Meu amor (2009) e Garimpo (2013).
Gisele Barão

É jornalista

Rascunho