Estruturas sem centro?

Culturas shakespearianas: formas da intensidade
Ilustração: Tereza Yamashita
07/12/2015

Eu moro em qualquer lugar
Na coluna do mês passado, a recepção, digamos, precoce, da obra de Michelangelo no século 17 no México colonial levantou um problema de grande interesse. Ora, como a notícia das obras do artista italiano teria atravessado o Atlântico?

Ainda mais: como essas mesmas obras poderiam ser imitadas e, nos casos bem-sucedidos, emuladas, se os artistas novo-hispanos nunca tiveram acesso direto à fatura do mestre italiano?

Um pouco como no teatro shakespeariano, às vezes é preciso fechar os olhos para finalmente ver o que se passa em cena. Ou, radicalizando a máxima de Leonardo Da Vinci: la pittura è cosa mentale, portanto, no contexto novo-hispano, a melhor forma de admirar Michelangelo consistiu em ampliar a noção: toda forma de arte é um constructo da imaginação. Daí, nada mais natural do que emular uma obra jamais vista!

Você tem razão: deixo de lado a literatice, pois já conhecemos a resposta: os artistas novo-hispanos apropriaram-se da obra de Michelangelo por meio da circulação de gravuras e desenhos, assim como de descrições textuais de seus principais trabalhos. Os primórdios da produção artística no território colonial foram delineados num universo estruturalmente desauratizado — pois assim seja.

(Por favor, pare um instante e releia meu artigo do mês de setembro, no qual propus o conceito. Caso contrário, se assim preferir, siga adiante: mas considere que arte desauratizada é aquela que explicita a impossibilidade de encontrar uma origem estabilizadora.)

Seria este um traço que marcaria a arte colonial com o sétimo selo de uma ausência paralisante? A resposta mais usual é um rotundo sim! Isto é, se recordarmos certa corrente crítica, ainda vigorosa nas décadas de 80 e 90 do século passado, e que, com base em testemunhos eventuais de viajantes e naturalistas europeus, quase sempre muito apressados — e cujos textos foram lidos, ingenuamente, como relatos cristalinos, transparentes e, por isso, verdadeiros em seus próprios termos (!) — decretou um conjunto nada desprezível de impossibilidades: nos trópicos não se pensa; as ideias não circulam; a ficção é precária; as formas se estiolam; as relações são voláteis; o naturalismo impera, etc., etc., etc.

(Sem sabê-lo, nessa voragem ecumênica, são todos leitores de José Eustasio Rivera: ¡Los devoró la selva!)

E essa corrente crítica se levava — no fundo, ainda se leva — muito a sério.

Pois é.

Retomo o fio da meada.

Melhor: recorro ao antídoto infalível contra todo e qualquer provincianismo teórico: uma abordagem comparativa.

Às vezes…
Hora de comentar, brevemente, a exposição Rafaello, Parmigianino, Barocci. Metafore dello sguardo, organizada nos Musei Capitolini, em Roma.

A curadoria estruturou a exposição das obras, composta sobretudo por desenhos, a partir de um olhar cruzado; aliás, de grande importância para o projeto que desenvolvo de uma poética da emulação.

Explico: principal nome da escola romana, Rafaello destacou-se pela perfeição formal de seus desenhos, constituindo-se, assim, em auctoritas incontornável para todo artista que desejasse dominar idêntica técnica. A exposição, por isso mesmo, mapeava as reações de Parmigianino e Barocci ao desafio de emular o mestre de Urbino.

As palavras da organizadora da mostra são eloquentes:

Olhando Rafaello não diretamente, porém com os olhos de Francesco Mazzola [Parmigianino] e de Federico Barocci, é possível lidar com o tema do confronto e da herança (ou disputa) entre artistas, destacando-se dois pintores, que, em sua produção gráfica, se expressaram copiosamente, experimentalmente e com força de inovação. [1]

No juízo da curadora, Parmigianino, embora tenha sido considerado um autêntico “Raphael redivivus”, permaneceu, em alguma medida, restringido pela presença dominante da imitatio do mestre na sua assinatura. Tal aspecto em nada compromete sua perfeita técnica, mas reduz o escopo da invenção. Por outro lado, Barocci deu o passo decisivo ao produzir uma síntese complexa e nada óbvia, especialmente porque se tratava de “uma pacífica combinação entre Disegno florentino e Colore veneziano” (p. 15).

Dois passos atrás.

Em primeiro lugar, me expressei mal — muito mal. Em relação a Parmigianino não deveria ter escrito: embora. Eis a expressão justa: “Parmigianino, porque foi considerado um autêntico “Raphael redivivus”, permaneceu, em alguma medida, restringido pela presença dominante da imitatio do mestre na sua assinatura”. Vale dizer, como um Rafaello redivivo, Parmigianino não se diferenciou o bastante do modelo que adotara. Em consequência desse limite, sua aemulatio teve pernas curtas, por assim dizer.

Daí a relevância da mescla ousada por Barocci, pois, na paisagem artística do tempo, as escolas romana e veneziana eram adversárias, privilegiando, respectivamente, o desenho e a cor. O gesto de Barocci, associando estilos opostos, praticamente conduziu, no mínimo favoreceu a aemulatio que distinguiu sua fatura. Afinal, ele não poderia ter encontrado o primado da cor no mestre maior do desenho, assim como negligenciaria a perfeição dos traços e dos contornos se fosse apenas adepto de Tiziano. O pulo do gato de Barocci residiu na superposição de tendências contrárias.

(Claro: aqui, El Greco merece um capítulo à parte; aliás, todo um livro. É verdade; anoto sua sugestão.)

Não surpreende, pois, a conclusão do raciocínio. Parmigianino e Barocci precisaram medir o alcance de sua obra seguindo um metro rígido:

O objetivo era esclarecer quais foram os processos de assimilação, emulação e diferenciação no tocante ao modelo (…). Rafaello torna-se, desse modo, o espelho no qual os dois [Parmigianino e Barocci] se refletem para conhecer melhor a própria imagem. (p. 14).

Retorna, agora na Europa, a questão que assombrou os primórdios da arte novo-hispana. Isto é: se Rafaello era a auctoritas incontornável, como mirar-se no espelho de sua obra? Em tese, admirá-la cuidadosa e longamente seria o meio mais adequado. E, como todos estavam na Itália, por que não fazê-lo in situ?

Eis o benefício de uma abordagem comparativa, que, quase sempre, evita constrangedoras autoflagelações intelectuais e estéticas — definidoras dos previsíveis adeptos da melancolia chique. Pois, ao que tudo indica, na maior parte das vezes, os emuladores de Rafaello também recorreram a gravuras e desenhos de originais. Afinal, nem Parmigianino tampouco Barocci conheceram, diretamente, todas as obras que, nem por isso, deixaram de imitar e, se exitosos, emular.

(Antídoto simples, você pode comprovar.)

Em alguma medida, a arte italiana também conheceu instâncias de desauratização. No fundo, não há experiência estética que possa considerar-se imune a elas. A questão-chave, pois, refere-se à intensidade da experiência.

Tudo bem, você concorda, e sem esconder a impaciência, me pergunta: E daí?

Estrutura sem centro
Venho à segunda exposição, igualmente realizada nos Musei Capitolini, L’età dell’angoscia. Da Commodo a Diocleziano (180-305 d.C.).

A premissa da curadoria muito interessa à perspectiva que venho desenvolvendo nesta coluna.

Vejamos.

Na história romana, o período abarcado pela exibição corresponde ao instante da denominada “anarquia militar”, pois um grande número de imperadores foi imposto pelo exército e, com frequência perturbadora, deposto pouco depois pelas mesmas tropas. Naturalmente, a instabilidade política decorrente dessa miríade de governantes agravou as dificuldades econômicas, comprometendo as estruturas de controle de Roma em relação às inúmeras províncias do Império.

Não é tudo: a resolução desse longo período de enfraquecimento da autoridade central dependeu de uma atitude que, de direito e de fato, assumiu a incapacidade de Roma para manter o estatuto de centro indisputado do vasto Império. Diocleciano — aliás, ele mesmo, oriundo da Dalmácia, uma das tantas províncias romanas — dividiu o Império em quatro regiões administrativas. A partir desse momento, passaram a coexistir quatro imperadores, um para cada parte do Império, dois com o título de augustus e dois com o título de caesar.

(Ah! a minúcia das disposições simbólicas: mesmo os títulos se fragmentaram, engendrando duplos miméticos, como se fossem anúncios de futuros conflitos.)

Você insiste (com uma ponta de razão): E daí? Agora vai dar uma de historiador?

Calma!

A historiografia consagrou esse período como uma era de ansiedade, em virtude do colapso cotidiano do Império, e de angústia, dada a provável iminência da queda do poderio romano. A história da arte projetou na produção do período uma imagem da precariedade e do temor decorrentes daquela circunstância vulnerável.

A curadoria da exposição virou essa interpretação de ponta-cabeça — o que não deixa de ser um exercício divertido.

O período de mais de noventa anos que transcorre entre a anarquia militar, que se seguiu ao assassinato de Cômodo (31 de dezembro de 192), e a ascensão ao poder de Diocleciano (20 de novembro de 284), foi, para os fenômenos estéticos um momento de ruptura no que se refere à tradição precedente, implicando o desenvolvimento de uma nova linguagem e de uma nova concepção que, até agora, estiveram relegadas (com poucas exceções) aos setores da arte denominada plebeia e da arte definida como provincial, isto é, a arte praticada pelas classes inferiores ou periféricas do Império.[2]

Por que não inverter o espelho? Sem dúvida, Roma perdeu pouco a pouco, mas de forma irreversível, a posição de centro absoluto. Porém, pelo avesso, tal perda propiciou um movimento de grande importância: “a construção de novas sedes imperiais, ou seja, de estruturas urbanas, militares ou rurais, que hospedavam de modo permanente ou quase permanente os imperadores romanos e seu séquito de ministros e generais” (p. 15).

Numa palavra, as estradas, todas, continuaram a levar a Roma, mas a viagem tornou-se muito mais lenta, porque, agora, as paradas podiam ser infinitas.

(Como se uma proliferação de “cortes” se transladasse do centro do Império para suas periferias… E isso muito antes de Napoleão Bonaparte.)

Essas novas sedes imperiais, por sua vez, tornavam-se pequenos centros para as áreas vizinhas ou para o território sob sua competência administrativa. Isto é, de um ponto de vista macroestrutural, à perda do centro absoluto, constituído pela Cidade Imperial por excelência, Roma, correspondeu, historicamente, a emergência de uma miríade de centros locais — centros periféricos, se desejarmos forçar a nota. Por isso mesmo, se tal período foi vivido pelos romanos como uma época de angústia, pelo contrário, para os habitantes das províncias — numericamente, a parte majoritária da população imperial — o mesmo instante histórico foi experimentado como um campo inédito de possibilidades, e, no limite, como uma fase de crescimento e expansão.

O tema é fascinante e levará longe no livro que preparo sobre a poética da emulação, tal como a vejo numa série de exposições realizadas nos últimos 15 anos.

De imediato, porém, limito-me a uma observação.

No período abarcado pela exposição, as rupturas estéticas mais instigantes foram originadas nas províncias. Os curadores da mostra deram grande ênfase aos relevos funerários produzidos no norte do Império. Nas regiões que hoje se encontram na Bélgica, e parcialmente na Alemanha, na passagem do segundo para o terceiro século da era cristã, esculpiram-se imagens relativas aos afazeres cotidianos e às ocupações definidoras dos personagens nelas celebrados. O realismo da apresentação de atividades do dia a dia tinha o peso de uma transgressão estética de proporções inauditas, pois, tal modelo iconográfico, criador de novos esquemas figurativos, não guardava relação alguma com a tradição clássica, teimosamente preservada em Roma.

Posso ver a moça doce sorrindo sozinha: Como assim: esquemas figurativos? Realismo? A ingenuidade do João Cezar não tem limites.

Ela, uma moça moderna e muito sofisticada, torce o nariz. Mas ela não entende o que realmente interessa: aqui, realismo quer dizer: invenção de novas formas, estudo de novos tipos de proporção entre as figuras e de novos enquadramentos no espaço de volumes e sombras tornados possíveis por um novo olhar; no caso, um olhar realista. No contexto da exposição que comento, trata-se de um realismo propriamente formal.

Ainda: o traço decisivo: o aumento da distância efetiva em relação ao controle estreito de Roma, em seu momento áureo de domínio, favoreceu um distanciamento simbólico que, sem abdicar da técnica, aprendida nas oficinas imperiais, acrescentou ao modelo clássico elementos próprios.

Isso mesmo: sou repetitivo: a poética da emulação talvez tenha sido inventada no seio de uma circunstância não hegemônica.

Eis, então, um ponto a ser aprofundado: explicitar a proximidade e a distância entre poética da emulação e aemulatio.

Outro: se toda prática artística tem um quê de desauratizada, isso não quer dizer que toda arte desauratizada partilhe idênticos estímulos ou produza resultados similares.

Mais uma vez, a intensidade da experiência de desauratização deve ser o fiel da balança.

Talvez
Eis a imagem que se desenha, ainda que por enquanto não passe de uma mancha conceitual, simples intuição que exigirá um bom par de anos de trabalho duro: uma estrutura sem centro, com níveis diversos de dinamismo e formas instáveis de hierarquia.

Seria esta a forma das culturas shakespearianas? Podemos projetar o conceito, autêntico anacronismo deliberado, para culturas e épocas muito diferentes?

(Alguém sabe a resposta?)

notas

[1] Marzia Faietti. “Premessa”. Rafaello, Parmigianino, Barocci. Metafore dello sguardo. Roma: Palombi Editori, 2015, p. 14. Nas próximas ocorrências, citarei apenas o número de página.

[2] Claudio Parisi Presicce. “Ansia e Angoscia. L’arte per l’individuo dai Severi a Diocleziano”. Eugenio la Rocca, Claudio Parisi Presicce, Annalisa lo Monaco (orgs.). L’età dell’angoscia. Da Commodo a Diocleziano (180-305 d.c.). Roma: Mondo Mostre, 2015, p. 13. Nas próximas ocorrências, citarei apenas o número de página.

 

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

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